quinta-feira, 22 de junho de 2017

CIVILIDADE & CIDADANIA - Os diferentes níveis do "jeitinho"


Caro Dr. Luiz Roberto Bodstein:


Antes de tudo, agradeço a disposição em me ajudar! Com meu projeto de conclusão de curso estou escrevendo uma série de reportagens sobre o "Jeitinho Brasileiro". São seis grandes reportagens abordando as razões históricas, as explicações sociológicas, o jeitinho na política no nosso dia-a-dia, a questão da (falta de) cidadania, a visão do estrangeiro que mora no Brasil além, claro, das consequências sociais e econômicas para nós brasileiros.

Aproveito também para lhe convidar a participar de um debate sobre o Jeitinho Brasileiro no site lançado recentemente pelo escritório do senador Jarbas Vasconcelos aqui no Recife. Após entrevistar o senador sobre o "jeitinho na política" para o mesmo trabalho, fui convidado para moderar o debate sobre o tema.
Forte abraço,
João Alencar
(81) 9278.XXXX


1. Como o senhor definiria o “jeitinho brasileiro”?

LUIZ ROBERTO BODSTEIN: - Ainda que encarado em outras culturas como característica de versatilidade e adequação a diferentes situações – que constatei em diferentes países por que passei – e tido assim como uma qualidade do nosso povo, no cotidiano de quem o vivencia esse “jeitinho” se revela um preocupante vetor de perda de limites no que toca à conduta ética na sociedade.  Os que se beneficiam desse recurso nas relações sociais insistem em atribuir-lhe um caráter de sagacidade e vocação para o sucesso, quando, na verdade, tal ótica não passa de um disfarce para intenções bem menos nobres e ações espúrias, em que predomina um sentimento de vaidade por reconhecerem-se “mais espertos” que os demais, no sentido pejorativo da expressão.  Nesse sentido, como definição eu diria que o “jeitinho”, tal como foi difundido em nossa cultura, é um câncer social que se alastra e contamina, principalmente, os que não desenvolveram um lastro no seu esquema de valores para idenficá-lo e combatê-lo de forma sistemática, e não apenas nas grandes ações que se percebe com facilidade, mas nos pequeninos atos de cada dia, pois – como já dizia Oscar Wilde no início do século XX – são esses os que fazem ou desfazem o caráter. 


2. Do porteiro ao síndico do prédio, do professor ao deputado, vivemos numa sociedade altamente personalista, na qual, geralmente, as características pessoais são mais valorizadas que a impessoal competência do cargo. Por exemplo, comenta-se que tal professor “não ensina tão bem”, mas “é super gente boa”, sendo assim, deve-se aceitar sua pouca competência profissional. Quais as conseqüências sociais dessa quase onipresente dificuldade brasileira de separar o público do privado, as relações pessoais das impessoais? 

LRB: - Tal dificuldade está diretamente associada a uma inegável conduta aética que assumiu uma equivocada conotação de “humanitária”, sob cuja égide se justifica todo tipo de protecionismo, e “deferência” que acentuam a desigualdade entre os que detêm foros privilegiados de qualquer natureza e os que não encontram respaldo para defender sequer os direitos mais básicos das relações humanas.  A prática generalizada de nepotismo, corporativismo e outros “ismos” que se alastram muito mais rapidamente do que os controles criados para restringí-los são praticados sem culpa, pois que, quando arguídos, os que os praticam se defendem com argumentos sustentados por uma suposta legitimitidade – pelo menos na ótica deles – com base em instituições universais e quase sagradas como “respeito à família”, ou “ética profissional”, para justificá-los.  Na realidade um eufemismo para uma absoluta incompetência no discernir entre ético e não-ético ou, o que é pior, uma real intenção de obter vantagens pessoais em detrimento do coletivo.  Esse quadro de privilégios restrito ao círculo das relações pessoais é agravado por uma perniciosa postura de condescendência que atropela o sentido de justiça e da escolha por mérito de competência. Na prática o que se configura é uma demonstração inequívoca do velho axioma da “farinha pouca, meu pirão primeiro”.  Consequência social?  Perpetuação das desigualdades e manutenção do “status quo” dos privilegiados. 


3. Assumindo uma postura orgulhosa de considerar-se um povo “esperto e desenrolado”, muitas vezes já nem mais percebemos quando contornamos situações adversas em nome da cordialidade. Mas como viver numa sociedade em que a maioria da população infringe e consente com o descumprimento de certas leis? 

LRB: - Eis aí o maior desafio dos que alimentam uma esperança de transformação social via consciência coletiva. A partir do momento em que se constata que tal postura parte, principalmente, dos que deveriam dar o exemplo em função de suas posições de destaque, seria absoluta utopia – ou até mesmo ingenuidade – acreditar que se poderá promover tal mudança de mentalidade de forma pontual, ou através de sanções de caráter legal, que só surtem efeito sob fiscalização sistemática. Ações coersitivas podem impor respeito por medo de punição, mas não educam.  Posso afirmar que o exercício individual e anônimo é tão desgastante e improdutivo que adquire conotação de “quixotismo” ou vocação para auto-martírio.  O resultado quase sempre é de enorme frustração e sentimento de impotência ante o improvável.  Acredito no trabalho “de formiguinha” da grande mídia, retratando exemplos, apontando desvios de comportamento no cotidiano assimilado como “normal” pelas pessoas.  Ainda que intelectuais de gaveta torçam o nariz para tais mensagens via personagens de novelas ou pela arte levada ao grande público, enfatizando apenas as manipulações políticas que se esconderiam por trás, não há como negar os referenciais de comparação que geram para, a longo prazo, estimular a mudança de cultura.  Independente dos modismos que se instalam em paralelo, a exposição continuada de temas que afetam o emocional das pessoas irá sempre produzir resultados na elevação do patamar qualitativo da sociedade, muito mais rapidamente do que ações individuais ou isoladas de pequenos grupos. 


4. Conta-se, num certo estereótipo exagerado, que os comerciantes holandeses diziam que era impossível fazer negócio com um brasileiro antes de se fazer amizade com este. Atualmente, o Brasil está em 70º lugar no último ranking de Desenvolvimento Humano (IDH), medido pela ONU. Pode-se dizer que a prática do jeitinho constitui um entrave ao desenvolvimento econômico e social do País? 

LRB: - Tenho para mim que sim. Não há dúvida que estariamos num estágio social bem mais evoluido não fosse por esta nefasta mentalidade do “jeitinho”. Como também acredito que inverter-se totalmente esse estado de coisas seja tão danoso quanto este quadro que constatamos hoje na nossa cultura.  Minha experiência em culturas opostas à nossa – como na Inglaterra, por exemplo – serviu para me mostrar que a solução para uma quase absoluta displicência com regras não será, de forma alguma, a cobrança e o rigor excessivo na sua observância, como acontece naquele país. O sentimento que se desenvolve é de intolerância ao mínimo deslize individual em prol de um suposto respeito ao coletivo, que torna o convívio terrivelmente sufocante, com repercuções nítidas no emocional das pessoas.  É claro que um inglês terá uma resposta bem menos negativa que a produzida em mim ao vivenciar tal intransigência para o cumprimento de regras.  É sair de um extremo para o outro, em que a diferença não vai além da forma com que se lida com o problema, mas o impacto sobre as relações entre as pessoas é igualmente pernicioso.  Acredito no equilíbrio, em qualquer situação, independente da natureza dos malefícios que se pretenda corrigir.  As revoluções são necessárias, sim, mas sempre em caráter transitório, até que uma nova ordem se instale, restaurando o equilíbrio entre os extremos.  Se mantidas como regime de controle de massa, invariavelmente descambam para cenários artificiais que substituem consciência por vigilância, o que jamais prevalece a longo prazo. 


5. “Nas nossas maiores virtudes, estão os nossos maiores defeitos”. A frase de Sérgio Buarque de Holanda parece-me resumir bem os dois lados da ‘cordialidade’ do brasileiro. O senhor concorda com esse pensamento? Seria possível fazermos das nossas virtudes, apenas virtudes? Isto é, conciliar a eficácia de um sistema individualista anglo-saxão com a cordialidade brasileira? 

LRB: - Falar em construir-se uma cultura “virtuosa” nesse nível me parece utópico demais. Como enfatizei anteriormente, a palavra-chave será sempre o equilíbrio.  Acredito que seja possível, sim, harmonizar cordialidade com um patamar mais elevado de respeito a regras voltadas para o coletivo.  Mas somente se tal interface for construida de dentro para fora, reunindo ações públicas e privadas em torno de um processo educativo ininterrupto e auto-sustentável através dos benefícios progressivos que se consiga vislumbrar ao longo de sua difusão. 


6. Muitos são aqueles que afirmam que apesar de todos os problemas atuais, estamos avançando numa maior conscientização da sociedade, que a opinião pública está mais vigilante, etc. O senhor concorda com tal pensamento ou tudo isso não será suficiente enquanto não houver uma “política de tolerância zero”, como o senhor defende no artigo? 

LRB: - Como deixei claro no trecho do artigo a que você se refere, não defendo essa “política de tolerância zero” como algo que deva acontecer de cima para baixo, mas de dentro para fora, conforme mencionado acima.  Concluo o artigo enfatizando a necessidade da auto-cobrança, da conscientização de cada um para os malefícios que produzimos para toda a sociedade – inclusive com grandes prejuizos individuais – com a postura de condescendência para com o “jeitinho” que permeia as relações do cotidiano. A tolerância zero tem que espelhar uma tomada de posição quanto à forma como minimizamos os efeitos daninhos das nossas próprias ações do dia à dia, como quando “encostamos” no amigo que encontramos lá na frente da longa fila de um caixa bancário, ou escolhemos pagar a propina do policial corrupto achando que é mais vantajoso do que pagar a multa de trânsito, o que não é verdadeiro. Na prática só contribuimos para prolongar os privilégios que nos oprimem, e dos quais só reclamamos quando os descobrimos nos outros.  A postura ética a que me referi é uma responsabilidade de cada um de nós, não apenas a que se cobra dos que se descuidam e se deixam flagrar em público, sendo fator indispensável para a formação de uma sociedade mais consciente do seu papel na introdução da mentalidade que cobramos dos governantes que elegemos. 

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