sábado, 3 de junho de 2023

O drama de um pescador e o destino de Boipeba

 



Sábado, 3 de junho de 2023
O dito progresso só trouxe ódio para Boipeba

Bronca de mãe retoma esperança na ilha dividida.

Fui buscar naquela lupinha das conversas do WhatsApp quando – e de que forma – se deu minha primeira interação com Raimundo Esmeraldino, o pescador e líder popular de Boipeba, mais conhecido como Raimundo Siri.

Foi uma abordagem simples e direta: me identifiquei como jornalista e pedi para conversar com ele. Isso aconteceu no dia 14 de março deste ano. Na ocasião, levantava informações para a reportagem que publicaria dias depois no Intercept sobre o complexo hoteleiro Ponta dos Castelhanos – aquele resort que pretende ocupar 20% da ilha de Boipeba, no litoral sul da Bahia. Esse empreendimento tem como sócios José Roberto Marinho, dono da Rede Globo, Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, e outros quatro empresários endinheirados.

Desde então, forçados por uma sequência de fatos que se sucedem a todo momento na região, meu contato com Raimundo Siri foi se intensificando até se tornar constante. As obras do resort, autorizadas antes pelo governo da Bahia, foram embargadas. Houve uma audiência pública na Assembleia Legislativa do estado para tratar da questão, e o decisivo: Siri recebeu ameaças de morte, em vídeos, áudios e mensagens de texto – o que também noticiamos no Intercept

Nos vídeos, homens e mulheres dizem que vão "quebrar as pernas do Siri". Nos áudios, falam em jogar ele de "cima da ponte". As mensagens o desqualificam, chamando-o de "indigente" e "culpado de todas as desgraças que vem acontecendo". 

O curioso é que, embora Siri tenha meu contato direto e me mande atualizações regulares sobre Boipeba, não partiu dele a iniciativa de me informar sobre os ataques que vinha sofrendo. Quando o questionei o motivo, a resposta foi comovente: "não achei que isso era assunto do jornalismo". 

Raimundo Siri tem o desapego natural e a fé obstinada de outras lideranças que infelizmente perderam a vida na nobre defesa do meio ambiente. Lutar pela preservação ambiental e das comunidades tradicionais no Brasil é uma atividade de alto risco. 

Afinal, nosso país é o que mais matou líderes ambientais no mundo na última década, de acordo com dados da ONG Global Witness. Pelo período de pesquisa, o balanço ainda exclui assassinatos emblemáticos, como de Chico Mendes, em 1988, e Dorothy Stang, em 2005. Mas inclui as mortes de Dom Phillips e Bruno Pereira, às vésperas de completar um ano.


No momento, Raimundo Siri está longe de Boipeba, lugar que nasceu e viveu por 60 anos. Isso é um sacrifício para ele não apenas pela relação afetiva com a ilha, mas também econômica: o pescador não tem renda fixa e nem aposentadoria, ou seja, tira do mar seu sustento para pagar as contas. 

O lado cruel nessa história é que as ameaças e ataques são de moradores da própria comunidade Cova da Onça, onde Siri vive e conhece todo mundo. Um lugar hoje marcado pelo ódio, rancor e violência. Conversei com integrantes do Conselho Pastoral dos Pescadores, a CPP, entidade ligada à Igreja Católica, e eles dizem que o empreendimento Ponta dos Castelhanos contratou entrepostos que têm feito um trabalho forte de convencimento e cooptação dos moradores. Segundo os relatos, eles estariam prometendo com o resort mudança de vida, geração de emprego e circulação de dinheiro em Boipeba.

Um dos áudios que tive acesso é bem sintomático desse sentimento dominante hoje na ilha. Nele, um morador dizia "não quero que meu filho seja pescador que nem eu (...) Quero que ele tenha vida e oportunidade". E depois atribuiu a Siri o embargo da obra – o que, dessa forma, impediria a realização desse sonho. 

Nesse caso, há uma responsabilização indireta do empreendimento sobre a produção alegórica de futuro numa população humilde. Marinho, Fraga e os outros empresários não ameaçaram Siri, mas mexeram com um imaginário de progresso que não dialoga com a sustentabilidade e a preservação de comunidades tradicionais. 

O fato de Siri se opor a isso o torna um inimigo número 1 justamente das pessoas que ele tenta proteger.

O jornalismo que o Intercept acredita denuncia exatamente essa ação de poderosos e suas forças descomunais tanto no plano material (destruição, silenciamento e devastação), quanto simbólico (mexendo com sonhos, desejos, expectativas e frustrações). 

Uma grande vitória da reportagem que publicamos foi ouvir a voz de Siri narrar um pedido de desculpas vindo de uma mãe de um dos homens que o ameaçou. "Ela me ligou e disse que ficou horrorizada quando soube que o filho dela gravou áudio me atacando. Disse que brigou com ele e que ele nunca mais vai repetir isso. Quando tudo se acalmar, eu vou lá pessoalmente conversar com esse rapaz. O ódio tá muito grande em Cova da Onça, mas temos que lembrar sempre que lá todo mundo é irmão", disse ele.

Pode parecer ingênuo pensar assim, mas a preocupação e bronca dessa mãe é um respiro de esperança familiar e comunitária num lugar atualmente dilacerado por ódio e violência.

André Uzêda
Editor sênior do Intercept Brasil

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