sábado, 18 de dezembro de 2021

OS TRÊS TIPOS DE CONSTRUTORES

 




    Quando eu era menino e reclamava de algo errado que um colega estivesse fazendo fora de casa, a resposta invariavelmente era sempre esta:  “E daí? A rua é pública! Eu faço o que eu quero e ninguém tem nada com isso!”. Para quase todo mundo a resposta soava como algo bastante lógico e natural: a rua é pública, e portanto não é de ninguém!  Sim! É exatamente assim que se acreditava! O entendimento de licito ou ilícito era algo que tinha a ver apenas com território, não com valores. Se estou na rua e ela é pública, então não pertence a ninguém e posso fazer o que quiser que ningúém me pode impedir. Ninguém exceto a polícia, é claro! A polícia pode, porque é o trabalho dela: um trabalho como outro qualquer, com a diferença apenas de que o empregador não é uma pessoa física, mas o estado. 

    Não se precisa ir muito além pra entender o quão distorcida é essa visão de mundo pela ótica dos valores humanos ou pelo conceito de cidadania, já que a via pública está lá porque todos nós precisamos fazer uso dela, e daí pagamos pessoas para que a construam e seja mantida em condições de uso. Então essa história de “faço o que quero e ninguém tem nada com isso” é a mais deslavada das falácias, porque a res pública – ou coisa pública – nunca serviu para designar aquilo que não tem dono, mas algo que tem muitos donos! E esses donos somos todos nós, cidadãos da república – ou donos legítimos da res pública – da qual deriva o nome. Assim, cada vez que assistimos a um indivíduo destruindo a coisa pública ele está nos vilipendiando ao atacar aquilo que, legítimante, nos pertence. Como também cada vez que alguém desvia o dinheiro que pagamos para construir a coisa pública e o coloca no próprio bolso, de forma a enriquecer com isso, estamos sendo literalmente vítimas de roubo, pois ficamos mais pobres pelo desembolso e privados do benefício por que pagamos, enquanto quem o desvia fica mais rico às nossas custas.

    Depois dessa explanação de viés pedagógico dispensa-se lembrar que os políticos que elegemos são colocados lá para construir a república, ou seja:  construir a res pública de que precisamos para sobreviver dignamente, a partir do dinheiro que lhes entregamos em prol do bem comum. Os representantes da res pública  (o executivo, o legislativo e o judiciário) são os responsáveis por tornar isso possível. Seu papel é atuar como construtores da res pública, cada qual no seu respectivo papel. Ao Executivo (presidente, governadores e prefeitos) cabe receber o dinheiro e realizar as obras de que precisamos para atender seus diferentes fins.  Ao Legislativo cabe definir as regras para a construção, e fiscalizar se o Executivo a realiza da forma que prometeu fazer. E quando eles não se entenderem entra o Judiciário para dizer quem tem razão e corrigir a postura equivocada de um deles com base na Lei. 

    Mas sempre se irá deparar com aqueles que não estão nem aí para cumprir seu papel institucional, ou seja, pra fazer aquilo que nós lhes pagamos para ser feito. E todo o poder que lhes outorgamos para trabalhar por nós é então usada para trabalhar em benefício deles próprios.  Aqui vale lembrar que, pelo menos no que reza a lei, são pagos por nós para fazer o que nós precisamos, ou seja, são prestadores de serviço iguais a qualquer outro que contratamos e nos deve o serviço pelo qual foi pago. Daí porque ser chamado de SERVIDOR PÚBLICO, que é a real natureza de sua atividade:  como qualquer servidor, cabendo a ele prestar um serviço sob o comando de quem o está pagando. No caso, NÓS!  A Carta Magna referenda esse entendimento ao dizer, literalmente, que “todo poder emana do povo, e por ele será exercido”, embora raríssimos são os que se lembram disso depois que recebem o “contrato” assinado. 

    A única forma de prevenção para não se fazer a pior escolha é ter sempre em mente que existem vários tipos de prestadores de serviço cobrando de nós, portanto, o uso de critérios muito bem definidos para privilegiar o todo, e não esta ou aquela parte. O bem social, como se sabe, só acontece pela consciência de que somos todos senhores de nossas escolhas, mas escravos das consequências. E que todo critério bem definido passa pelo entendimento desses diferentes tipos, como veremos a seguir: 

    Eu começaria pelos que realmente curtem o que fazem por entender seu papel enquanto artesões das obras que nunca teríamos, não fosse o talento indiscutível, muitas vezes único, dominado por eles. Diz-se daqueles que “curtem o que fazem”, referindo-me à consciência de seu papel de executor – a atividade meio – e se sentir plenamente compensado por ele, já que atrelado à postura de serviço. A plenitude de sua realização é obtida quando encontra o resultado a que se propôs, sem contudo se afastar, em momento algum, da consciência de que ele pertence ao contratante, ou seja: a quem o remunera para fazer o que faz. Eles se veem artistas entregando-se de corpo e alma ao mister de fazer aquilo que sabem ter nascido para fazer, para ao final entrega-lo ao seu verdadeiro dono. Com sua visão de escultores do mundo eles se concentram na atividade-meio sem desviar o foco do fim, que reconhecem não lhes pertencer. Daí deste tipo de prestador ser chamado de “construtor de catedrais”, já que reconhecido por todos em sua doação, e por se sentir ele próprio no topo da pirâmide no quesito da auto-realização. 

    Existe também aquele segundo tipo de prestador que faz exatamente o que é contratado pra fazer, mas nada além do que está no contrato. Daí ser tratado como "típico", "mediano" ou "medíocre". Ele nem de longe vê no trabalho que deve entregar algo interessante ou digno de nota, daí porque não estará nem um pouco preocupado em colocar mais empenho do que o estritamente necessário pra cumprir o trato, e muito menos acrescentar algo que poderia fazer uma diferença para o contratante, ou destacá-lo em relação a um concorrente. Nada de menos ou de mais tanto pra você quanto pra ele, e onde cada qual deva fazer apenas o papel que lhe foi designado: o que paga pelo trabalho e o que o executa conforme o prometido! Podemos chamar esse tipo de prestador de serviço de “quebrador de pedra”. 

       Mas tem ainda aquele terceiro tipo de “prestador de serviço” cuja ocupação pede aspas quando a mencionamos, mesmo que para realizar exatamente o mesmo trabalho que os outros dois. Você estabelece os termos do contrato e ele se compromete a lhe dar seu melhor como o primeiro, e bem mais do que fez o segundo. E durante toda a obra vai tentar provar a você como é habilidoso e competente naquilo que faz. Você lhe dá carta branca para contratar tantos ajudantes quanto precise para tal resultado, e o adicional de cada um deles sai inteiramente do seu bolso, e não do dele, já que ele precisará dessa ajuda extra para entregar o que lhe prometeu da melhor forma possível. 

       O que você não sabe é que seu contratado jamais se sentiu como seu empregado, e muito menos como um prestador de serviço no real sentido da palavra. Se você encontrasse um deles em seu local de trabalho e lhe perguntasse o que estaria fazendo naquele momento, provavelmente responderia com algo como “batalhando pelo dim-dim”, ou “garantindo a sobrevivência”. Ele integra aquele grupo que, tão logo recebe sua cópia do contrato, passa de servidor a patrão, reveste-se do poder de decidir tudo sozinho e de exercer autoridade sobre quem o contratou. A partir daí é ele quem diz o que, como, quando, e de que forma vai entregar aquilo que você lhe pediu pra fazer, e você vai depender de que tanto quem fez as leis quanto quem a legitima concorde com você pra conseguir interromper esse estado de coisas. E é quando você descobre que ele colocou muito mais gente na “equipe” do que precisava pra fazer cada parte do trabalho, que os subcontratados não detinham qualquer conhecimento da obra pra fazer a parte deles, e que todos foram escolhidos a dedo numa espécie de “ação entre amigos” ou simplesmente por integrar a família. 

    E quando, passado algum tempo, o resultado do “trabalho” que lhe é mostrado não tem nada a ver com o contratado, e você se pergunta pra onde foi todo o dinheiro que você deu ao “encarregado” para ser distribuido pela equipe, você pode descobrir não apenas que ele botava quase tudo no bolso e dava o que restasse, ou então – o que é pior – que nunca houve “uma equipe”:  seu contratado havia acertado com eles de pagar a parte combinada sem que precisassem vir ao trabalho e embolsava, ele próprio, quase a bolada toda. Aí você se pergunta como o acordo entre eles conseguiu se manter por longos períodos de tempo, com tantos embolsando tão pouco e o chefe deles ficando com quase tudo. Essa equação, no entanto, é bem mais fácil de entender quando se pensa no significado de “receber pouco” pela cabeça de quem não faz nada. Tudo o que entra, então, pra quem não dá nada em troca, é lucro! Tal “modelo de negócio” poderia ser mantido “ad eternum” sem qualquer problema, não fosse o “olho gordo” do próprio encarregado que vai crescendo a cada dia, ou a cada nova consulta em sua conta bancária.   

    Ele descobre que pode ganhar ainda mais e se esforçar menos, já que sua função de “provedor” daquela gente toda lhe dá muito trabalho: alguns ele “criou e alimentou” até lhes dar acesso ao contrato e estarem aptos, por sua vez, a se transformarem em novos encarregados com seus próprios ajudantes. Mas com a condição, evidentemente, de seguirem reconhecendo-o como dono do negócio e a devida participação nos lucros como contrapartida. Já os demais “agregados” até manteriam o acordo inicial pela política do “pouco pra quem tem nada é muito”, não fosse o “encarregado-raiz” mudar as regras a partir de determinado momento, e escalar um ou outro para tudo o que ele não quisesse mais fazer. Ele sempre se verá, claro, como detentor desse direito e “dono do caixa” já que responsável por todas as benesses levadas aos outros, mas acabará provocando a reação dos que viam o lucro de antes sendo transformado em troca. Afinal, não tinha sido isso o combinado! Assim esses dois erros crassos do “encarregado-mor” – o “olho grande” e a quebra das regras – servem de gatilho para que os mais descontentes acabem entregando o jogo de um jeito ou de outro, rompendo o silêncio que garantiria a continuidade do esquema. 

    Mas e você, essa pessoa que, com sua aposta no “prestador de serviços” da vez, deu origem a toda essa confusão: de que jeito você fica nessa história? De uma forma bem franca e direta eu lhe digo:  com o indicador enfiado na boca – chupando o dedo – já que, a essa altura, a tentativa de anular o contrato vai lhe dar muito mais trabalho, e ainda criar muito mais problemas do que simplesmente largar de mão e esperar que o prazo da vigência expire por si mesmo. Por último resta perguntar por que tipo de construção buscamos.


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