terça-feira, 18 de julho de 2017

CIVILIDADE & CIDADANIA - Efeito dominó não tem retorno





Recebi um vídeo hoje de manhã que me fez refletir bastante, e este texto é consequência dessa reflexão. O vídeo é curto, objetivo e bem didático, e eu concordo com QUASE tudo o que ele diz. Seria bem mais fácil repassá-lo do que escrever este texto, é claro. Mas aí está a grande questão: meu contato logicamente me repassou porque confia na minha consciência quanto ao seu uso, pois alguns vídeos funcionam como um remédio que tem poder, tanto para salvar a vida do doente, como também de mata-lo se não fizer o uso correto dele. Preferi não arriscar. Mesmo com um grupo de contatos selecionado com muito critério, isso pode não se aplicar aos contatos de cada um, daí optar pelo texto. 

O vídeo mostra o trecho de uma entrevista com um analista político não identificado (extraído de um contexto não mostrado) onde ele explica que uma INTERVENÇÃO MILITAR (supostamente defendida por ele, imagino) não tem nada a ver com regime militar, governo militar, nem com ditadura militar. Tanto didática quanto conceitualmente, este é o trecho da declaração em que eu concordo inteiramente. Não há a menor dúvida de que são coisas distintas que não podem ser confundidas. Mas no que toca à relação de causa e efeito entre os termos, aí tudo muda de figura. Mas disso falarei mais à frente.
Outro fato que me chamou à atenção logo no inicio é quando ele afirma que “todo governo é uma concessão do poder armado” (sic), que foi o segundo ponto que justificou o “quase” na questão da minha concordância, pois de novo aí é mostrada uma REALIDADE CONCEITUAL e outra – bem mais complexa – que é a REALIDADE POLÍTICA desse entendimento.
Vamos às considerações sobre os dois aspectos, em que busco ser o mais objetivo possível, pois que se tratam de questões de altíssimo grau de complexidade para serem discutidas em algumas poucas linhas:
a) Até quem entende bem a diferença conceitual entre INTERVENÇÃO e DITADURA MILITAR sabe que o grande problema não está na distinção entre os termos, mas na grande dificuldade de se realizar a primeira sem que se acabe produzindo a segunda, mesmo contra a vontade de seus autores. Será que alguém já se perguntou se os militares que realizaram a intervenção militar em março de 1964 estavam interessados, efetivamente, em implantar no país uma ditadura militar, com todas as restrições às liberdades individuais e atrocidades que – quase inevitavelmente, se diga – dela resultam? Tenho certeza que não! E os militares, principalmente, sabem o que isso representa também para eles e suas famílias durante todo o tempo que precisarão se ocupar em manter as novas regras, pois que são seguidas apenas sob vigilância, nunca por consciência.
Um regime ditatorial, meus amigos, em qualquer país que se apresente, não é um filme de mocinho e bandido, onde de um lado se tem os carrascos repressores e do outro as vítimas de seus desmandos: implica em mergulhar-se num circo de horrores para os dois lados, que passarão o tempo inteiro usando todos os poderes de que possam lançar mão para exercer controle uns sobre os outros. A ditadura é literalmente uma guerra entre dois lados que se enfrentam o tempo todo, com a única diferença de que um se reveste do poder dito “constituído” e o do outro é declarado “clandestino”, mas onde não se aplica o direito legal e legítimo a nenhum deles. E conta ainda com o agravante de que as duas frentes que se combatem dividem o mesmo espaço físico, o que transforma em inferno a vida de todos, pois que nunca se sabe de onde partirá o próximo golpe, de onde virá a próxima insurgência nem onde explodirá o próximo enfrentamento!
Quem vivenciou um regime ditatorial prolongado sabe que numa guerra entre países o inimigo está do lado de fora, e na ditadura nunca se saberá quem é o inimigo, pois que o terrorista - fardado ou não - pode surgir a qualquer momento e em qualquer lugar, seja nos lares das pessoas, nos quartéis ou nos palácios do governo. O clima é de tensão e terror real, quando muito velado e reprimido, o tempo inteiro, do qual nunca se pode baixar a guarda, e daí porque tantas atrocidades acontecem por mera questão de sobrevivência. Muitos então escolhem matar para não morrer. Os militares sabem que suas fardas os transformam em alvos bem definidos e visíveis, e precisam o tempo todo proteger-se, tanto quanto os civis deles, um clima mais do que perfeito para os que foram bandidos desde sempre darem plena vazão aos seus instintos sanguinários sem a preocupação de serem contidos, já que os controles legais perdem seus efeitos!
Que ser humano em sã consciência – seja civil ou militar – acha que um clima desses é vantajoso para si e para sua família? Só os de mentes doentias, é claro, e psicopatas existirão sempre, sendo contingências com que temos de lidar não importando o regime. Se fosse vantajoso para os militares manter-se no poder à força, e ter que mergulhar suas vidas nesse clima de alerta permanente, alguém acha que já não teriam tomado alguma posição diante de tudo isso a que vimos assistindo nas últimas décadas, com tanta corrupção e calhordice por parte tanto da direita quanto da esquerda? Você ainda não viveu uma ditadura? Mas sabe certamente como agem os vândalos infiltrados em uma manifestação, que saem destruindo tudo o que encontram pela frente e são rechaçados por uma polícia porra-louca que atira sem olhar em quem acerta, não é assim? Pois imagine isso 24 horas por dia, durante os 365 dias do ano, e terá chegado perto do clima estabelecido numa ditadura!
b) O segundo ponto que quero abordar para justificar o “quase” da minha concordância é a afirmativa (literal) de que “todo governo é uma concessão do poder armado”. Aqui a distinção que pretendo abordar é no aspecto legal, e não no prático. Em termos legais, ou se olhada pelo aspecto jurídico da questão, poder-se-ia dizer que a frase assume uma interpretação DE FATO e outra DE DIREITO. Para o leigo, a “de fato” é a que acontece na prática, e a “de direito” seria a forma a ser respeitada para se enquadrar na legislação criada para seu controle, ou seja: uma coisa é o que se faz, e outra é o que a lei diz que se pode fazer, já que o objetivo maior da lei é definir EFEITOS como meio de controle sobre a decisão entre uma e outra.
Dessa forma a frase do analista político, pela ótica do fato em si, está correta, e é fácil entender a razão: como as forças armadas de um país constituem, por definição, a parte da estrutura social que tem o poder das armas em suas mãos, fica claro que seu exercício ficará sempre acima da capacidade de reação da população desarmada. E nesse aspecto não requer nem se ter um cérebro brilhante para deduzir que, em termos factíveis (ou visto pelo poder DE FATO), o dito popular que mais se aplica ao caso é: “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, sem maiores explicações, posto que o entendimento se faz óbvio.
Já pelo aspecto legal da questão (ou entendida pelo poder DE DIREITO), a frase soa como uma colossal afronta a tudo o que nações do mundo inteiro estabeleceram como princípio régio de estruturação de uma sociedade livre, que é a manutenção do controle sobre o poder das armas, teoricamente na mão das forças armadas para garantia dos direitos civis da população, e não como instrumento de intimidação e/ou submissão à vontade de quem as detém. Atenção para este verbo utilizado: as forças armadas, pela ótica do direito, são DETENTORAS das armas de que se utilizam, e não DONAS delas. As cartas magnas de todos os países – ou constituições, como são conhecidas – são escritas justamente para legitimar o direito da população civil de ser PROTEGIDA pelas forças armadas, e não ter esse entendimento invertido para tê-las como seus principais opressores!
Assim, trazer a frase do seu aspecto jurídico para o uso DE FATO que se possa atribuir a ela é um ato considerado não só ilegítimo como execrável em qualquer nação civilizada do mundo, pois que fere o princípio mais sagrado de que “todo poder emana do povo e por ele será exercido” (e não SOBRE ele!). A premissa é a mais básica que se possa entender quanto à sustentação das sociedades: as forças armadas, bem como todos os poderes formalmente constituídos em um país, existem para garantir o ordenamento institucional que visa manter seu povo como beneficiário de suas ações, jamais o contrário disso. As ditaduras, quando impostas à população, simplesmente invertem esse princípio fundamental, fazendo com que o poder criado para proteger passe a ser o beneficiário, e a população dedique sua vida à servi-lo, em vez de ser servida por ele. Daí a origem do termo “servidor público”, aplicado aos que integram a máquina do estado colocada, pelo menos teoricamente, A SERVIÇO da população, esteio de todos os direitos e deveres a que TODOS ficam submetidos.
A constituição dos países existe justamente para lembrar a cada cidadão – seja civil ou militar – que qualquer dos seus poderes instituídos está submetido à vontade de sua população, devendo exercê-los como REPRESENTANTES, e não em benefício próprio. À luz da legalidade, portanto, jamais se poderá admitir como correta a frase de que “todo governo é uma concessão das forças armadas” já que o poder armado representado pelos militares fica sob a gestão do executivo, mas igualmente submetido à vontade da população como qualquer outro poder. Nesse caso a representatividade que exerce é a da segurança NACIONAL, lembrando que país está associado a território, mas NAÇÃO diz respeito a seus cidadãos, independente do espaço físico que ocupem. Não seria necessária qualquer outra informação para demonstrar que, neste aspecto, a afirmativa do analista do vídeo está absoluta e integralmente equivocada à luz do princípio mais básico de qualquer democracia e estado de direito, pois que as forças armadas é que se apresentam como uma CONCESSÃO DO CIDADÃO. Assim sendo e como seus representantes, suas lideranças não podem jamais ser vistas como “uma concessão das forças armadas” da nação (leia-se POVO) que os colocou lá justamente com a missão de garantir a observância da lei e da ordem.
Assim, antes de se defender uma intervenção militar pensando simplesmente que será um rápido ajuste de rota para uma retomada da normalidade logo a seguir, há que se pensar que todo efeito dominó começa com um leve toque na primeira peça, que depois de feito irá fatalmente jogar a estrutura ao chão sem que seu próprio autor, uma vez iniciado, possa exercer seu poder para impedi-lo. Daí porque, no meu modesto entender, todas as ações que permanecem sob nosso controle – como a cobrança incansável e exaustiva das situações previstas em lei – devem ser tentadas primeiro.

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