Artigo - O Coringa e o “novo normal”: Um paralelo para refletir
O Coringa, personagem dos filmes do Batman, é retratado como um vilão caótico, anárquico e com traços inegáveis de psicopatia, que a psicologia apontaria como de características complexas por conta de uma mente de difícil compreensão.
O perfil psicológico do personagem possui caracteristicas com as quais os brasileiros começaram a se familiarizar, a partir dos rumos políticos que a direita foi introduzindo no país a partir de 2016, como a naturalização do caos e da anarquia, tornando-os parte integrante do nosso cotidiano. Se o personagem da ficção coloca o dia a dia como algo estruturalmente caótico convivendo com regras sociais ilusórias, a nova direita igualmente busca desestabilizar a ordem estabelecida, mostrando que qualquer pessoa pode sucumbir à loucura, se preparada psicologicamente para isso.
Como é fácil perceber no personagem, o Coringa é um mestre na arte de manipular pessoas, utilizando o medo e a incerteza para seu controle de forma a criar artificialmente situações de crise. O objetivo é romper com os limites da moralidade humana através do medo de uma ameaça, especialmente criada para movimentar a massa em torno de seus objetivos de poder.
O Coringa ficcional tem um senso inflado de autoimportância, o que serve para justificar-lhe a crença de que suas ações são justas, por mais violentas que se mostrem. Ele se vê como “agente de mudança”, buscando emprestar aos seus atos um cunho de “altruismo”, por mais que suas motivações se revelem absolutamente egoístas e movidas apenas por sede de domínio e manutenção do poder.
Na vida real o narcisismo envolvendo seus líderes é impactante, já que precisam dessa imagem de força para trazer cada vez mais pessoas para sua causa. Daí precisarem de um permanente “estado de guerra” para lhes dar sustentação, mesmo enquanto vivenciam internamente um sentimento de ameaça em relação aos que os rodeiam. Não confiar em ninguém, portanto, é parte inalterável desse contexto como estratégia de sobrevivência. Funciona como os arcos de uma pedra atirada a um lago, mas no qual os círculos, em vez de se formarem a partir do centro, se movimentam de fora para dentro.
A metáfora serve para ilustrar a paranóia que se abate sobre o líder, já que ao mesmo tempo em que precisa da sustentação de seu poder pelo maior número possível de pessoas, diante da ameaça por seus atos espúrios os círculos da desconfiança vão se fechando em torno dele: começa reduzindo o universo de sua proteção ao círculo dos conhecidos, em seguida aos mais leais, depois à família, até que o medo o ataca a tal ponto que não hesitará em sacrificar até mesmo o seu núcleo familiar para salvar a própria pele. Daí a percepção clara pelo observador externo de que o amigo de hoje está sempre fadado a acabar como o inimigo de amanhã.
O Coringa, como sabido, demonstra falta de empatia e remorso, tratando os outros como peças de um jogo. Sua capacidade de causar dor sem culpa é uma característica central da personalidade do sinistro personagem. E aí entra a simbologia do “sorriso eterno”, o prazer indelével mostrado na face diante do sofrimento alheio, próprio de mentes profundamente mergulhadas na psicopatia.
É conhecido que o Coringa utiliza o humor como uma forma de desumanizar suas vítimas e lidar com a dor e o sofrimento, transformando a tragédia em uma piada. Um traço marcante de sua personalidade, portanto, é o humor negro, como que para neutralizar a tragédia humana para si mesmo, eliminando dessa forma eventuais cobranças pela própria consciência.
O pensamento político que vimos observando na extrema-direita, nesses últimos anos de sua ascensão, poderia facilmente ser comparado ao perfil psicológico do Coringa em inúmeros aspectos. Pratica-se ali uma busca perene pela desestabilização do ordenamento formalmente constituido – suas normas sociais e políticas – em nome de uma visão de mundo que desafia as “estruturas tradicionais”, segundo o discurso adotado de “outsider” em relação a um passado histórico. E isso não exclui todo tipo de táticas provocativas para gerar caos e confusão.
Como já concluimos após análise dessa direita no antes, durante e depois do poder, ela se revela extremamente eficiente em manipular informações e criar narrativas que exploram o medo e a insegurança. E nesse contexto se aproxima tão gritantemente da forma como o Coringa manipula as emoções das pessoas em prol de seus objetivos, que se poderia tranquilamente suspeitar de que o treinamento tático de sua militância inclui a exibição obrigatória de todos os filmes do Batman, onde o Coringa exercita sua capacidade multifacetada de manipulação.
Líderes da extrema-direita mundial se posicionam invariavelmente como salvadores da sociedade, na qual prometem restaurar uma suposta ordem "perdida". Essa megalomania persistente em nada se diferencia do modo como o Coringa se vê enquanto “agente de mudança”. Tal mudança, no entanto, não se estende àquela fatia da população – certamente a maior parte – que eles veem como os verdadeiros causadores desse tão alardeado “estado de caos” que pretendem corrigir. Daí o combate sistemático e a desumanização de quantos integrem grupos minoritários ou de opositores, tratando-os como “inimigos a serem exterminados”.
Aqui não se precisa lembrar que essa absoluta ausência de empatia ressoa com a sociopatia emprestada à personalidade do Coringa, não deixando de lado a retórica temperada com humor negro e sarcasmo usada para deslegitimar adversários e normalizar comportamentos agressivos que lhes sejam desfavoráveis.
Enquanto o Coringa é a figura fictícia que representa o caos
e a anarquia, naquela forma pedagógica que a arte utiliza para evidenciar
possibilidades assustadoras, a extrema-direita os concretiza na vida real. Ela escancara, na identificação com o
personagem, uma visão de mundo que desafia todas as normas estabelecidas, diferindo
ou não em motivações e consequências os meios de que lançam mão. Tal realidade nos coloca em permanente estado
de prontidão, cobrando vigilância em relação à dinâmica social e à política
extemporânea destes novos tempos, de modo a que a análise desses paralelos possam
oferecer uma compreensão mais profunda do futuro que nos aguarda, se nada se
fizer – e bem rápido – a esse respeito.
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