quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Os bastidores da guerra fria entre a Democracia e o Autoritarismo

 



Sempre que a democracia é ameaçada, surge nos bastidores uma guerra fria que passa ao largo do conhecimento público, dando início a uma movimentação intensa de heróis anônimos que se propõem a impedir que o autoritarismo se instale. Uma a uma as liberdades individuais vão sendo cerceadas, e esses heróis precisam resistir antes que a situação se mostre irreversível. 

Em outra frente, profissionais de coragem como Jamil Chade e Juliana Dal Piva também se movimentam no terreno minado do jornalismo investigativo, e que também lhes cobra uma boa dose de coragem e competência para sair ilesos de  batalhas silenciosas que fazem milhares de vítimas. E o que Chade nos mostra aqui são os bastidores assustadores dessa guerra de passagens dramáticas que caberiam facilmente num filme de James Bond.


Como diplomatas tentaram, de dentro do Itamaraty, conter atos de Bolsonaro





Dois diplomatas entram em um café em uma capital europeia. Um deles é brasileiro e carrega informações ultrassecretas. Sua missão é desarmar uma bomba. Parece filme de espionagem, mas a cena é real e se repetiu no governo Bolsonaro. Uma rede de resistência clandestina foi criada no Itamaraty para conter a política externa bolsonarista. 

Temas como mudanças climáticas, direitos humanos, a questão palestina ou mesmo a Guerra da Ucrânia foram tratados nesses encontros sigilosos, confirmados pelo UOL com 13 funcionários do Itamaraty, incluindo embaixadores e servidores administrativos, e em um amplo e ainda inédito estudo de pesquisadoras da FGV e de Oxford. 

A rede não envolveria apenas alguns poucos nomes e, de fato, teria se espalhado por alguns dos principais departamentos da chancelaria. Os objetivos da rede clandestina eram: 

·       Permitir que o outro país tivesse tempo para reagir a mudanças na política externa do Brasil, sem que uma crise fosse estabelecida.

·        Preservar a credibilidade do Brasil no exterior e salvar décadas de uma construção da diplomacia nacional. 

Para diplomatas, a palavra correta seria resistência, que existiu "em nome da democracia e da soberania", e sempre ocorreu dentro de parâmetros da legalidade. No fundo, tais atos não eram nada mais que uma tentativa de "equalizar posições" diante daqueles que estavam destruindo as estruturas do Estado. 

A verdadeira sabotagem, neste sentido, era o que estava ocorrendo com o sequestro de décadas da diplomacia brasileira para atender aos objetivos da extrema direita. Os encontros clandestinos eram apenas uma das táticas da resistência, que também: 

1.    Montou um esquema de contatos diretos com governos estrangeiros, sem ter de passar pela cúpula do Itamaraty e com o objetivo de desarmar crises diplomáticas.

2.    Limitou-se a ler "a instrução que chegou de Brasília", em reuniões na ONU, OMS ou OEA, sem uma atuação de empenho para convencer os demais países a seguir o Brasil em suas posições.

3. Copiou documentos que poderiam ser usados para defender um diplomata contra acusações e registrar a ilegalidade de certos atos do Planalto.

4.    Gravou reuniões de forma clandestina nas quais a cúpula bolsonarista ordenou a suspensão de termos de documentos ou o veto a determinadas resoluções que citassem a palavra "gênero" ou outros temas delicados.

5.   Vazou informações para a sociedade civil sobre o posicionamento do Brasil na esperança de que uma pressão pública fosse feita para impedir que um determinado ato fosse concretizado.

6.    Publicou artigos sob o nome de outra pessoa ou de um acadêmico.

7.    "Arrastou o pé", diminuindo o ritmo de trabalho na implementação de instruções estabelecidas pela cúpula bolsonarista.

8.    Enganou a chefia ou informou o que era absolutamente necessário, ocultando da cúpula situações ou posições por parte de outros governos.

9.       Realizou reuniões sem registros na agenda oficial, impedindo que certos temas ou debates entrassem no radar da direção.

 




 



As mesmas condições foram identificadas na pesquisa coordenada pela professora da FGV Gabriela Lotta, em parceria com Izabela Corrêa, de Oxford, e Mariana Costa, também da FGV. As pesquisadoras entrevistaram diplomatas em diferentes posições na carreira e que estão alocados em distintos países e setores do Itamaraty. Todo o levantamento é feito de forma sigilosa e anônima, para preservar a identidade dos entrevistados. 

Segundo os funcionários ouvidos, a gestão Bolsonaro promoveu: 

·      Monitoramento de diplomatas sobre o que curtiam nas redes sociais, se eram membros de partidos políticos ou até com quem eram casados. Uma funcionária relatou que não foi promovida depois que "foi descoberto" que seu marido trabalhou em um governo anterior.

·       Substituição de funcionários que se dedicavam a estudos de temas contrários à agenda de Bolsonaro como clima, meio ambiente, gênero e direitos humanos, por pessoas leais ao governo.

·       Promoções e transferências para o exterior foram transformadas em moeda de troca e instrumento de ameaça.

·  Palavras como "gênero", "Cuba" e "mudanças climáticas" foram vetadas, evitadas ou até apagadas de documentos oficiais do passado. Uma servidora admitiu que teve como função modificar portarias, discursos, informações no site oficial e telegramas. 

        Mulheres e homossexuais foram especialmente alvo dessa nova fase. "Há uma masculinização e a volta de certas práticas, como piadas no corredor", contou Gabriela Lotta, a pesquisadora da FGV. “O que mais se escutava nas entrevistas era:  o tio da Sukita se normalizou.

 

O que diz o Itamaraty sobre as denúncias? 

Nada. Procurado para comentar a reportagem, o Ministério das Relações Exteriores se manteve em silêncio. O número de pessoas removidas de seus cargos chegou a tal ponto que consolidou-se o apelido informal usado para designar diplomatas loteados em locais onde não faziam nada: "Departamento de Escadas e Corredores". 

Um exemplo emblemático aconteceu logo nos primeiros meses da gestão do ex-chanceler Ernesto Araújo, que decidiu isolar e deixar sem função o diplomata Audo Faleiro. A justificativa: ele teria trabalhado para os governos do PT.

 



 





Para muitos, Faleiro foi usado como exemplo: 

“Olha o que pode ocorrer contigo. Não faça isso se não quiser virar o próximo Audo.”

 

O tamanho do estrago

Os relatos coincidem com quatro anos que transformaram o Brasil em um pária internacional. Para a professora da FGV Gabriela Lotta, o impacto não se limitou aos muros do Palácio do Itamaraty: "A diplomacia brasileira tem sua moral e influência construídas na tradição e expertise. O governo negou isso, prejudicou a política externa e enfraqueceu a diplomacia e a imagem do Brasil.” 

Na opinião da pesquisadora e dos embaixadores e diplomatas ouvidos pelo UOL, resistir foi a saída encontrada para sobreviver a um dos momentos mais tenebrosos da democracia brasileira. Muitos, porém, pagaram um preço elevado, tanto profissionalmente como em relação à saúde mental: “O uso de tarja preta foi disseminado.”

 Assista ao video:  Como diplomatas tentaram conter Bolsonaro

Assista ao vídeo:  Jamil Chade fala sobre o caso


1 Comentários:

Às 8 de dezembro de 2022 às 10:57 , Blogger Luiz R. Bodstein disse...

Como em todo regime autoritário, o governante precisa manter controle sobre tudo e sobre todos ao seu redor para permanecer no poder, e isso cria um ambiente repleto de conspirações tanto a favor do regime quanto para se defender dele.

 

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