quinta-feira, 17 de novembro de 2022

A política armamentista e sua ligação com a devastação na amazônia

 








Nas duas últimas semanas, cenas grotescas de manifestações de rejeição ao resultado das urnas tomaram as redes sociais. Muitas viraram memes. Seriam cômicas se não revelassem – em sua maioria – situações dramáticas beirando o caos tanto social quanto econômico, algumas delas trágicas. Um dos casos aconteceu há poucos dias quando os ditos “manifestantes” atacaram policiais rodoviários federais a pedradas e tiros, ferindo três agentes.  

Em que lugar isso aconteceu? Foi no sul do Pará, na BR-163, uma das principais estradas que cortam a Amazônia Legal. Alguns dados oficiais sobre o arsenal de armas em poder de civis revelam que em 2018 havia pouco mais de 100 mil pessoas registradas como caçadores, atiradores ou colecionadores de armas, os CACs. Esse número hoje é de mais de 670 mil pessoas. Já o efetivo da Polícia Militar na ativa no Brasil é bem menor: de 406 mil policiais. E o das Forças Armadas é de 360 mil militares (metade do número de CACs).  

Atualmente o número de armas registradas por CACs já ultrapassou 1 milhão. Até julho já eram 434.715 fuzis nas mãos de CACs. E quem são essas pessoas? Não sabemos. O Exército não divulga esses dados, e o controle sobre quem pode se registrar como CAC foi sendo flexibilizado progressivamente durante os quatro anos do governo Bolsonaro.  

O resultado é que, apenas nos últimos quatro anos, o Brasil se armou – tendo a posse de armamento aumentado em quase sete vezes em relação a 2018 – , e a sociedade sequer tem a dimensão do que isso representa como fator de risco. O Exército, instituição que deveria manter um controle preciso e eficiente desses dados, acabou cúmplice da política armamentista do governo Bolsonaro, onde nem as polícias têm acesso a um banco unificado sobre o número de armas circulantes no país. 

A preocupação atual era a de ter a exata dimensão do armamento de civis no país, até o Intercept começar a trazê-lo a público na última semana, ao levantar dados sobre os clubes de tiro abertos na Amazônia Legal nos últimos anos. Uma pesquisa lenta e cuidadosa a partir do levantamento de todos os CNPJ ativos e a data de abertura de cada um deles, informação que o Exército afirmou não possuir. O jornal descobriu que alguns clubes de tiro simplesmente não apareciam nos registros oficiais. A invisibilidade aumentava exponencialmente porque nem todos os endereços conseguem ser identificados no mapa, o que exigiu um trabalho de geo-referenciamento e contato direto com os responsáveis pelos estabelecimentos de tiro.

Dessa forma foi possível localiza-los no mapa um a um, e descobrir que a expansão desses clubes aconteceu principalmente no entorno do chamado “arco do desmatamento”, revelando uma ligação direta da expansão armamentista com a devastação da amazônia cometida por invasores de terras indígenas para efeito de garimpo, ocupação descontrolada pelo agronegócio, o comércio ilegal de madeira, uma progressiva criação de pastos e toda sorte de atividade ilegal envolvendo desmatamento e exploração descontrolada do solo. 

A região da Amazônia Legal levou 43 anos para criar 86 clubes de tiro entre 1974 e 2017, e apenas nos últimos 4 anos foram abertos 107 novos clubes, atingindo um total de 193 localizados na área desse importante bioma. Observada sua disposição no mapa pode-se ver áreas indígenas totalmente cercadas por eles, com grande parte dos clubes de tiro da região instalados entre as rodovias federais BR-158 e BR-163. Entre as duas vias, do norte do Mato Grosso ao sul do Pará, estão o Parque do Xingu e as terras indígenas Kayapó, Menkragnoti, entre outras, o que não deixa dúvidas  sobre a motivação para a escolha desses locais e a franca expansão dos CACs em área indígena. 

Esses e muitos outros dados estão sendo revelados na série “Amazônia Sitiada” que o Intercept começou a publicar na última semana. O trabalho de extrema importância para o monitoramento de atividades ilegais na floresta envolveu dezenas de profissionais entre repórteres, editores, checadores, designers, ilustradores, advogados, e outros componentes que extrapolam o mero contexto jornalístico, além de muita persistência pela equipe envolvida.  

A dificuldade para resgate do controle é descomunal, devido ao significativo desmonte dos órgãos de fiscalização levado a efeito  durante o governo Bolsonaro, tanto no âmbito das forças armadas quanto da Polícia Federal. Reféns do governo, essas forças passaram por expressiva perda de controle operacional, como também de informações sobre armas e quem as adquire. 

Não se pode, inclusive, isentar de responsabilidade o Exército, que não revelou qualquer empenho para gerenciar uma perda de controle em tais dimensões, como no que diz respeito aos registros de CACs e clubes de tiro, algo que pode descambar proximamente para consequências trágicas numa região onde populações indígenas e ribeirinhas há anos vêm convivendo com um cotidiano extremamente violento.

(Fonte: O Intercept Brasil)



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