sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

A PANDEMIA, A LIBERDADE INDIVIDUAL E O DIREITO COLETIVO

 

        Estudando fatos históricos como o da Gripe Espanhola, nos tempos do ensino médio, a maioria de nós certamente só via numa pandemia a batalha humana contra um terrível mal que vinha pelo ar e poderia matar-nos a todos, onde quer que nos escondêssemos.  E por mais terrível que parecesse tal ameaça sobre nossas cabeças, hoje sabemos que era muito mais simples olhá-la pela ótica maniqueista do “ela e nós”, já que de um lado se tinha um perigo terrível e letal, e do outro a humanidade inteira tentando escapar da extinção que ela representava. 

        Um século depois, porém, ao nos vermos mergulhados numa nova tragédia de mesma natureza, constatamos que vivenciá-lo é infinitamente mais complexo do que nossa ingênua ignorância de então poderia supor, quando a víamos como uma batalha maniqueista disputada entre o bem e o mal.  Olhada assim à distância, só havia a humanidade de um lado tentando sobreviver, e do outro a doença que todos precisariam combater. Nada mais fácil de assimilar do que um campo de batalha com territórios tão claramente definidos:  uma área neutra no meio, assumida como linha divisória visível e respeitada, e um exército de cada lado – coeso e focado no resultado – tentando impor sua força sobre o outro. 

        Foi preciso sobreviver até este terceiro ano da pandemia para descobrirmos como éramos simplistas na concepção de uma crise sanitária dessas proporções, pois que essa linha divisória entre campos inimigos não existe, como também não há dois exércitos de lados contrários se confrontando: aliados e inimigos estão todos misturados entre si, e você nunca saberá de onde virá o golpe que pode colocá-lo fora de combate a qualquer momento. Dessa forma cada um de nós se coloca sob permanente suspeição. O inimigo pode estar dentro de nossa casa, sentado ao seu lado num ônibus ou na sala de espera enquanto aguardamos pelo atendimento do dentista, e a sensação de insegurança nos invade o espírito a todo instante! 

        Numa guerra o inimigo já estará definido no momento em que é declarada, mas numa pandemia ele vai surgindo a cada momento de onde menos se espera. Seu poderio bélico pode crescer rápida e inesperadamente dependendo das influências verticais ou horizontais que receba e o alimente, deixando-nos em permanente vulnerabilidade por só o percebermos na hora do ataque. A ameaça se mostra contínua e a vulnerabilidade a que nos vemos submetidos é devastadora. Nesse momento veremos no aliado típico aquela pessoa que, assim como nós, saiu em busca de informações sobre como se proteger e aos que estarão no seu entorno, e como inimigo aquele “lobo solitário” movido pelas próprias razões – sempre inesperadas ou sorrateiras – que a qualquer momento pode apertar um botão na cintura e explodir uma bomba no trem que você divide com centenas de pessoas na ida para o trabalho. Pense nesse indivíduo como alguém que se acredita senhor do seu direito à vida ou morte até quando não escolhe a direção para onde aponta a arma, ou saiba quantos morrerão ao explodir a bomba que leva com ele por onde quer que passe.

        E aqui vale deixar claro: não é errado admitir que a vida de uma pessoa só diga respeito a ela e suas escolhas. E esse direito lhe é garantido não só pela Constituição do país em que viva – se regido por princípios democráticos – como por direitos universais reconhecidos por toda a civilização humana, desde que – e cabe aqui o destaque – desde que o direito de todos os demais não seja violentado pela ação desse indivíduo que se acredita com prerrogativa de ameaçar a outrem com suas escolhas.  Entenda-se que nenhum direito é absoluto quando exercido em sociedade, e o nosso termina onde começa o do próximo. Enquanto sua escolha não contrariar o direito alheio – notadamente o mais sagrado de todos, que é a vida – cada qual pode fazer da sua o que quiser. 

        A pessoa não quer se vacinar? O direito lhe é garantido por lei, desde que se recolha a local distante dos demais. Ela não aceita que lhe imponham o uso de máscaras? Direito que também tem, desde que não frequente locais públicos. Ela trata a introdução de uma agulha no braço sem consentimento como um estupro? É seu direito, pois a liberdade de pensamento é inalienável num estado democrático. Apenas o direito que tem de não ser “estuprada” é exatamente o mesmo das demais pessoas de também não o serem. Não pela agulha, evidentemente, mas pelo virus que poderá estar sendo introduzido nelas. “Meu corpo, minhas regras!”, pode declarar essa pessoa aos quatro ventos, e eu defenderei até a morte tanto o seu direito de dizê-lo quanto de fazer valer sua decisão. Mas nunca se poderá aceitar que a mesma regra não se aplique a outros que queiram cuidar do próprio corpo, e não necessariamente pela ótica da livre exposição, mas da livre proteção! Vale dizer que o direito de alguém à exposição é soberana, desde que (é claro!) só exponha a si mesma, mas não a outrem. E diga-se ainda como acréscimo, que o direito à exposição estará sempre sujeito a um “desde que”, enquanto que o direito à proteção traz uma implícita aceitação ampla, geral e irrestrita. Tanto que até o ato de matar em defesa da própria vida ou de terceiros é legítima e admitida em qualquer sociedade humana, inclusive nas que não primam pela defesa das liberdades individuais.        

        Para simplificar o entendimento e esvaziar de uma vez por todas a discussão, basta lembrar que qualquer direito, em se tratando de vida em sociedade, traz embutido um “desde que...”. Mas sempre será prerrogativa incontestável de todo ser humano ocupar uma caverna no topo do Himalaia e estabelecer regras próprias, desde que não se faça acompanhar de seu cônjuge, filhos, ou de seus animais de estimação, inclusive, que também têm direitos assegurados por lei, posto que este que não se limita apenas ao que é vivo, mas a tudo o que se preste a garantir a continuidade da vida!