sábado, 29 de outubro de 2022

O período eleitoral mais sujo da história republicana



Neste domingo, 30 de outubro, se encerra a mais suja e perigosa campanha eleitoral que o Brasil registra em sua vacilante trajetória democrática.  

As estratégias rasteiras, o derrame bilionário de verbas, as fraudes narrativas, os temas morais pinçados do sótão da políticaos constragimentos de patrões a empregados, o inédito uso da máquina pública em uma agiotagem eleitoral sem precedentes e os atentados armados a eleitores e instituições nos lançaram ao limite da exaustão física e mental. Muito mais do que os três meses regulamentados pelo Tribunal Superior Eleitoral, assistimos a um governo que se move em permanente palanque, comitê perpétuo, há quatro anos. 

O cansaço é nítido entre quem resiste. Desde eleito e antes mesmo de tomar posse, Bolsonaro guia sua bússola obscena e sua máquina de ódio no contraponto do republicanismo, na coação de princípios democráticos e na insistente busca por fragilizar ou deformar instituições que poderiam limitar seu campo de atuação em nome de um projeto personalista e autoritário de poder. O expurgo, finalmente, virá. E da forma mais simples, bela e direta que uma democracia prevê: o voto. E quem deu também tira. 

A se confirmarem as pesquisas de intenção de voto, teremos um novo (velho) governo pelos próximos quatro anos. O possível retorno de Lula, que assim se tornará o primeiro presidente três vezes eleito na história deste país, sinaliza a necessidade da imprensa, sobretudo livre e independente, de manter rígida a fiscalização dos atos de poder. 

O compromisso do petista é de não repetir erros que marcaram profundamente sua gestão e a de sua sucessora, Dilma Rousseff. Urgentemente, ele vai precisar restabelecer o pacto de equilíbrio entre os poderes, celebrado pela tão atacada Constituição de 1988, interrompendo as barganhas orçamentárias ao Congresso, os ataques ao Supremo e destituindo a política fisiologista entre partidos e protegidos no Executivo. 

No entanto, para além dos corredores do poder em Brasília, há uma explícita necessidade e um clamor de encontro com o Brasil real e seus reais problemas — léguas distante de mamadeiras de piroca, ideologia de gênero, cloroquina, entre tantas outras quimeras forçadamente trazidas às salas de jantar dos brasileiros num momento em que faltou justamente janta, comida, saúde e estado. 

Há uma necessidade de discutir segurança pública de forma séria e responsável, interrompendo os genocídios em favelas e espaços periféricos para atender a uma política de combate às drogas que se mostra completamente esgotada e falida. Na questão ambiental, a Amazônia arde em chamas, enquanto os aparelhados órgãos federais vendam seus olhos para a grilagem de terra, a derrubada ilegal de madeira e o avanço indiscriminado da monocultura da soja e da criação de gado. 

Existe um país enlutado, que literalmente sai menor da pandemia. São quase 700 mil pessoas a menos, mortas pelo descaso, com suas memórias humilhadas pelo escárnio de quem fez troça da asfixia e pouco caso da ciência. 

O empenho de todos os órgãos de imprensa comprometidos com a democracia é de cobrar de forma contundente o enfrentamento dessas questões, jogando luz nas contradições que pontuarão o novo governo, forjado numa enorme aliança multipartidária, com interesses díspares e muitas (muitas) vezes contraditórios. Esse é o provável governo que nasce domingo das urnas. 

O primeiro compromisso, porém, é efetivamente fazer valer esse nascedouro. Mostrar, constranger e vigiar qualquer sanha golpista ou farsa armada que tente melar o resultado das eleições, com narrativas ensaiadas há meses por quem sabe que foi derrotado no princípio básico de convencer o eleitor, soberano na escolha. 

Não existe "terceiro turno" e nem "adiamento". A eleição no Brasil precisa terminar neste domingo, porque é o dia previamente determinado pela Constituição. Qualquer coisa diferente disso tem nome: é golpe. Qualquer movimento contestatório é blefe e aposta no caos de quem anseia lucrar com a plena desordem social. 

A eleição termina no dia 30 de outubro porque o Brasil tem urgência em sua reconstrução e não pode assistir paralisado aos caprichos e perversões de um presidente que, nunca, em um só dia como governante, teve respeito ao cargo e aos milhões de brasileiros que representou. 

As eleições mais longas e sujas da história democrática do Brasil terminam neste domingo, ao custo de vidas que se foram, traumas não curados e um país em frangalhos, mas suficientemente capaz de se levantar. 

 

Flávio VM Costa



 




























quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Reflexão: A eleição mais importante da história


 

A eleição mais importante no país desde a redemocratização em 1985

        A dois dias da decisão, talvez você ainda não tenha a idéia exata do que está em jogo nestas eleições, e as mudanças definitivas que iremos experimentar com um eventual 2º mandato de Bolsonaro. Sim! A diferença deste pleito para todos os que já vivemos antes, desde que recuperamos o direito de eleger o Presidente da República, é muito maior do que uma simples escolha entre dois candidatos, e por razões que se colocam além das muitas teorias conspiratórias que militantes dos dois lados levantam sobre o candidato contrário, seja qual for. 

        Mas antes de entrar no cerne dessas razões, queria falar especialmente àqueles entes queridos que se fizeram presentes nos últimos 20 anos, e que portanto sabem bem como consigo ser implacável quando aviltado em meus princípios mais sagrados por uma política sem escrúpulos, que não hesita em pisotear grande parte dos valores inalienáveis que construí ao longo de toda uma vida, muitas vezes contrariando expectativas dos que nos são caros.  Essas pessoas – conhecedoras do meu histórico bem mais do que do meu discurso – dispensam aqueles argumentos de retórica que eu precisaria reunir com os que não conheça tanto. Elas lembrarão minha trajetória de ferrenho e implacável combatente do partido que tenta agora voltar ao poder, na conturbada realidade política que experimentamos. Liberam-me portanto de todo esforço pra elaborar frases de impacto que visem convencê-las de qualquer coisa, já que a jornada percorrida nesses anos todos falam por si. 

        Possivelmente saberão separar os muitos equívocos cometidos ao longo de meu incansável combate, do abismo estrutural que depois se estabeleceu no país entre ricos e pobres, entre pessoas de pele branca e de pele negra, entre centros urbanizados e comunidades periféricas, ou entre habitantes das cidades e povos da floresta.  Elas também sabem de minha busca pela coerência entre pensamento, discurso e ação. 

        Isso no mínimo legitimaria a quebra de algumas regras que estabeleci para mim mesmo, como a de não usar redes sociais para repassar conteúdos com destino certo (via aplicativos de mensagens), por mais que acredite neles, devido a uma formação visceral e fortemente contrária ao “efeito manada”. O motivo, de novo, não poderia ser mais claro: essa prática abusiva e execrável aplicada às massas busca convencer em vez de levar informação; enquanto defendo com unhas e dentes o direito inalienável às próprias escolhas do indivíduo dotado de um cérebro minimamente racional. Tendo até aqui mantido essa  mesma linha de pensamento, peço perdão a todos por, pela primeira vez, cometer tal heresia contra meu sistema de crenças ao enviar um conteúdo por esse meio, baseado numa emergência que nos cobra celeridade:  o real e imimente risco da perda irreversível de conquistas obtidas ao longo de um século de avanço civilizatório desde a era Vargas.  Possivelmente o fim buscado me redime do desvio em relação à longa trajetória de busca por coerência, desvio esse necessário ao enfrentamento de algo que, caso não o possamos evitar, se revelará catastrófico e irrecuperável, malgrado esforços vindouros de políticos, cientistas, profissionais e demais cidadãos conscientes de todas as matizes. Ainda que dura, precisamos lidar com essa realidade e tomar a melhor decisão a tempo de evitá-la. E aqui estão os fatos que o justificam: 

AmazôniaO IPCC (International Panel for Climate Change) alertou a comunidade científica mundial que, se mantido o ritmo destes últimos 4 anos, a Amazônia precisará de um ano ou dois, no máximo, para cruzar o limite de desmatamento que permite reversão, o chamado “ponto de não-retorno”, que é quando entra em processo de  savanização. Nesse estágio interrompe-se o ciclo da cadeia alimentar que garante a sobrevivência de toda a biodiversidade mundial. Entenda-se com isso a não-sustentação da vida terrestre e marinha pela extinção dos “rios voadores” que carreiam umidade até as regiões mais remotas do país. Períodos de chuva que alimentam as lavouras serão cada vez mais raros, já que a agricultura do sul depende da umidade que chega da região amazônica. As queimadas dessas áreas interferem de forma decisiva em todo o ecossistema tanto do país quanto de todo o globo, e de forma cada vez mais acentuada. Um exemplo bem ilustrativo foi a “chuva” negra que atingiu São Paulo em 2019 e assustou a população com a precipitação de uma chuva carregada de cinzas e fuligem por conta das devastação produzida pelas queimadas na amazônia legal. (veja em https://www.youtube.com/watch?v=31EQzZ0sdro) 

Destruição gradual dos biomas que garantem a vida dos povos originários e sua cultura, pelo desmantelamento dos mecanismos de fiscalização, e um número cada vez maior de invasões de áreas indígenas para a prática de mineração ilegal e grilagem de terras. Além do risco explícito às populações diretamente envolvidas, a extração descontrolada do minério deixa como consequência altos teores de mercúrio que contaminam rios e nascentes, dando causa a uma brutal e irreversível destruição ambiental. 

Fim da universidade pública – A PEC 208, em tramitação na Câmara, prevê a instituição de mensalidade nas universidades públicas. Tal ação não apenas afeta o acesso dos mais pobres ao ensino superior, mas resulta em drástica redução de todo o desenvolvimento científico realizado hoje no país, já que 95% das pesquisas brasileiras são conduzidas por essas instituições de ensino superior. (Veja aqui: http://www.assufba.org.br/novo/governo-bolsonaro-quer-acabar-com-a-universidade-publica-pec-pretende-cobrar-mensalidade-nas-instituicoes/)   

Extinção do SUS – Extinção já anunciada pelo governo do sistema nacional de saúde pública como o conhecemos hoje (SUS) a ser substituido por um projeto de “vouchers” idealizado pelo ministro da economia Paulo Guedes, em que os empregados receberão de suas empresas, por ocasião de cada situação que requeira atendimento médico, um “vale-saúde” para apresentar em hospitais privados que decidirão o tipo de tratamento para seus casos (https://sintrajufe.org.br/ultimas-noticias-detalhe/fim-do-atendimento-publico-de-saude-esta-na-pec-32-artigo-da-reforma-administrativa-prova-que-sim-sai-sus-entram-vouchers-de-paulo-guedes/). Mas o prejuízo não se concentra apenas no modelo do serviço,  mas ao provável uso que se fará dele por políticos inescrupulosos. Sem contar um atendimento submetido a todo tipo de interferências e interesses escusos sendo levado à população por meio dos ditos “vouchers”. Ricardo Barros, o líder do governo na câmara, por exemplo, só não pôde usá-la a seu favor neste mandato graças à pandemia, que mostrou a importância do SUS à população, o que colocou um freio nos planos de sua extinção. A pergunta que fica é: o SUS suportaria mais 4 anos de Bolsonaro? Os fatos dizem que não, e a explicação é simples: defensor manifesto e intransigente dos “vouchers”, o homem de Bolsonaro na Câmara traz um histórico de negociatas envolvendo o setor da saúde, graças à sua rede de amigos muito próximos e donos – adivinhe! – de grandes redes hospitalares. Você fatalmente seria encaminhado para esses hospitais que ganhariam muito dinheiro com vouchers distribuidos em larga escala a pacientes que, em troca, receberiam um atendimento de baixa qualidade e nada confiável.   

Direitos trabalhistas – Fim do 13 salário e das férias remuneradas que a política bolsonarista já vem suprimindo em diferentes relações de trabalho em nome de um alardeado crescimento econômico com suposta “produtividade” de mercado (especialmente no caso de entregadores  e motoristas de aplicativo que proliferaram durante a pandemia). Neste caso específico a pandemia atuou como fator de incremento (nocivo) e não de barreira, como ocorreu no caso do SUS. 

Desvalorização crescente do salário mínimo, que deixou de ter correção real pela inflação ao longo dos quatro anos do governo Bolsonaro. Só a titulo de comparação, enquanto o governo petista elevou o salário em percentual próximo de 70%, o somatório dos anos de Bolsonaro no poder reduziram-no em quase 5% pela não fixação dos valores anuais pelos índices da inflação. (https://sintrajufe.org.br/ultimas-noticias-detalhe/para-2023-governo-estima-salario-minimo-sem-ganho-real-se-proposta-de-guedes-valesse-hoje-minimo-seria-de-r-502/) 

Aparelhamento do estado para aumentar o controle pelo governo – Desde o início do governo Bolsonaro aparelhou-se as instutuições de controle que ainda protegiam o cidadão, inclusive aqueles órgãos federais que poderiam evitá-lo, como Polícia Federal (que é um órgão de estado, e não de governo), IBAMA (que deveria fiscalizar e punir invasões de terra e comércio de madeira ilegal), empresas estatais, autarquias, etc. Correu mundo o caso do jornalista Dom Philips e do indigenista Bruno Pereira, assassinados em meados deste ano por conta desse favorecimento do governo às invasões de terras indígenas, grilagem e garimpos ilegais. (https://www.folhape.com.br/noticias/dom-phillips-e-bruno-pereira-um-fim-tragico-para-dois-amantes-da/230592/) 

Aparelhamento das Instituições Bolsonaro tem trabalhado para eliminar barreiras a medidas do executivo especialmente criadas para ampliar seu poder, comprando o apoio do Legislativo e enfraquecendo o Judiciário que impõe contenção às suas medidas antidemocráticas. Na prática –  e segundo expoentes políticos e analistas das causas sociais ao redor o mundo – o objetivo é implantar um regime autocrático sem oposição. (Veja aqui:  https://www.brasildefato.com.br/2022/08/17/o-bolsonarismo-e-o-aparelhamento-do-estado-desafios-da-luta-futura) 

Liberação maciça de armas – A política armamentista do governo aumentou exponencialmente a ocorrência de atos extremados como o praticado por Roberto Jefferson esta semana, criando um ambiente hostil e de permanente ameaça, além de supressão gradativa dos instrumentos de defesa do cidadão, deixando-o à mercê de decisões unilaterais do estado, além do aumento descontrolado de armas pesadas nas mãos de qualquer cidadão, que acabam dando força ao tráfico de drogas, às milícias, e ao crime organizado como um todo, acelerando o aumento da violência, e que escapou até mesmo ao controle do Exército  (Leia aqui: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/07/16/brasil-abriu-quase-um-clube-de-tiro-por-dia-sob-governo-bolsonaro.htm)                                                                                                           

Diferença salarial entre homens e mulheres – Bolsonaro defende que mulheres engravidam, e por isso não devem receber salários equiparados aos dos homens “já que dão prejuízo aos seus empregadores”. Para o atual presidente temos “direitos trabalhistas demais no Brasil", deixando claro que, dependendo dele, muitos desses direitos – conquistados a duras penas – serão extintos. (Veja aqui: https://revistacrescer.globo.com/Familia/Maes-e-Trabalho/noticia/2015/02/jair-bolsonaro-diz-que-mulher-deve-ganhar-salario-menor-porque-engravida.html). A tragédia da pandemia levada ao mundo conteve, por razões óbvias, muitas medidas planejadas por este governo para implementação nos dois últimos anos de seu mandato, aproveitando a porta escancarada pela Lava Jato. Várias delas, porém, já haviam sido encaminhadas para o Centrão, e teriam sido implementadas não fosse a ocorrência da pandemia, que atrasou tais planos. 

        A lista de todas as medidas que Bolsonaro planeja implementar de forma definitiva é grande demais para caber neste texto, portanto só me limitei àquelas mais prementes que precisam ser contidas por apontarem, inequivocamente, para um caminho sem volta, ou que dificilmente possam ser revertidas devido à complexidade implícita que demanda vários anos, talvez décadas, para que as recuperemos no todo ou em parte, isso na hipótese de sobrevivermos ao desmantelamento das instituições. 

        Enfim, restam dois dias para a decisão mais importante de nossas vidas nesses últimos 37 anos, e cabe só a você mudar o trajeto que nos conduz ao cadafalso ou aceitar o destino que se abaterá sobre nossas cabeças. E isso não tem relação com uma escolha aleatória por este ou aquele candidato, mas com as consequências a que estaremos todos sujeitos caso não o vejamos como uma ameaça real e factível, em vez de reduzir tudo – em ato de profundo egoísmo – a uma escolha de cunho meramente pessoal. Esta até se mostraria legítima num alegado caso de desconhecimento dos riscos envolvidos e da tragédia que se seguirá à substituição da consciência por um político de estimação, mas injustificável na troca do bem comum pela vantagem pessoal que só um deles nos parece oferecer. 

        Faltando entendimento dos efeitos de uma escolha catastrófica e seus múltiplos desdobramentos, é compreensível que ainda estejamos indecisos, ou propensos a invalidar o voto. Mas com a consciência despertada a partir de informações corretas e incontestáveis, a responsabilidade não diz mais respeito ao voto que atenda nossos interesses específicos, mas a todos aqueles que pagarão o preço de nossa escolha. E isso, para os mais conscientes, pode resultar num ônus cívico e moral muito acima do suportável! Que as energias do Cosmos então o ajudem a tomar a decisão mais correta para todos nós!

E caso considere este conteúdo relevante o suficiente para ser compartilhado, faça-o... Mas só se sua consciência assim o ditar!


terça-feira, 25 de outubro de 2022

Coveiros do próprio túmulo - A herança maldita









Análise: Vender o almoço de amanhã para comer hoje

Medidas para colocar dinheiro no bolso dos mais vulneráveis vão  deixar milhões de endividados

Por Laura Naime, g1    


Violência, saúde, religião, tudo isso influencia uma eleição. Mas o que pesa, mesmo, é a economia – como bem sabia há 30 anos a campanha de Bill Clinton à presidência dos Estados Unidos, que cunhou a frase “é a economia, estúpido”.
 
E, por economia, entenda-se basicamente dinheiro: o que entra no bolso da população em forma de salários e benefícios, e o que sai na hora de pagar por produtos e serviços. O governo sabe disso.
 
Em junho, uma lei limitou a tributação dos estados sobre os combustíveis para forçar a queda dos preços nas bombas. Em agosto, o Auxílio Brasil passou a R$ 600, o auxílio gás dobrou de valor, e taxistas e caminhoneiros foram contemplados com auxílios específicos. Em setembro, foi a vez do crédito consignado para beneficiários do Auxílio Brasil. Este mês, a liberação para compra da casa própria com ‘FGTS futuro’.
 
São mais reais no bolso dos mais vulneráveis e de trabalhadores – e contas menos salgadas nos postos. Mas quando a economia do país (o tal do PIB) não cresce, vale para o dinheiro a máxima “nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. O dinheiro de hoje é a dívida de amanhã. Aliás, dívidas: vai dever o governo, vai dever a população.
 
Só este ano, a estimativa é que o governo gaste mais de R$ 40 bilhões com o valor extra do Auxílio Brasil, o aumento do vale gás e as ajudas para taxistas e caminhoneiros. Com o corte do ICMS, as perdas para os cofres dos estados podem chegar a R$ 150 bilhões. Dinheiro que terá que ser cortado de outros gastos, ou virar dívida para os próximos anos. 

No caso do governo, a bomba vai estourar nos cofres públicos – e pode virar problema para o reajuste de servidores, do salário-mínimo, de benefícios do INSS e nos serviços de infraestrutura, saúde, educação. 

Mas algumas das medidas dos últimos meses terão impacto direto – e rápido – nas contas dos mais pobres. Na última medida aprovada, o governo autorizou que trabalhadores usem dinheiro que ainda nem têm no FGTS para pagar prestações de casas populares do programa Casa Verde e Amarela. 

Na prática, ela institui uma espécie de consignado do FGTS: em vez de ir para conta do trabalhador, o dinheiro depositado pelo empregador vai para pagar as prestações. Se perder o emprego, o mutuário pode ter que arcar com parcelas maiores, e corre o risco de perder também o imóvel. 

A medida que gera preocupação, no entanto, é o crédito consignado para beneficiários do Auxílio Brasil. Isso porque o crédito, em geral, deveria ser usado para investimento ou para um momento de dificuldade – mas, para muitos brasileiros mais pobres, a hora de dificuldade é agora, é a fome de hoje.
 
Só na Caixa, cerca de 20 milhões de pedidos pelo consignado foram feitos até a semana passada. São 20 milhões de brasileiros que dependem do Auxílio Brasil e que terão descontados até 40% do valor do benefício ao longo de vários meses.
 
Na fila de uma agência do banco na semana passada, a reportagem do g1 encontrou interessados no dinheiro que sequer sabiam que os valores seriam descontados do benefícioÉ gente que está vendendo o almoço de amanhã para comer hoje – muitos, sem sequer saber disso. É uma legião de pessoas vulneráveis que, depois do alívio momentâneo, podem ter meses ainda mais difíceis pela frente.
 
Ou, nas palavras duras de dona Joana Francisca: “Fazer o quê, né? Tem jeito? Se eles descontarem esse dinheiro da gente, aí mesmo que ninguém sai da miséria. A gente pega o dinheiro agora e depois vê como faz para pagar, né?”.

 

domingo, 23 de outubro de 2022

Domingo a gente faz um país

 



Antônio Prata

Domingo a gente faz um país 

Daqui a dez, trinta, cinquenta anos, os que ainda estiverem vivos poderão contar com orgulho a nossos filhos, netos e bisnetos:  "Naquele domingo, 30 de outubro de 2022, eu estava do lado certo!".

Não era um lado homogêneo o dos que votaram pra salvar o país da catástrofe bolsonarista. Pelo contrário, éramos gente de todos os cantos do espectro político, mas que passamos por cima das nossas diferenças por concordarmos com alguns pontos inegociáveis. Que só poderíamos ter uma vida digna na democracia. Que, numa Terra redonda, a ciência é quem decide que remédio funciona e qual é charlatanice. Que quando centenas de milhares de brasileiros morrem, prestamos as nossas condolências e solidariedade, não os imitamos, às gargalhadas, morrendo por asfixia. Ao decidirmos votar em Lula e Alckmin naquele 30 de outubro não escolhemos uma chapa ou um partido político: participamos de um plebiscito entre ditadura e democracia.

Naquele domingo tão perigoso havia a chance real de um sanguinário se reeleger. Havia a chance real de que, num segundo mandato, ele aparelhasse o STF, mudasse a Constituição, silenciasse a mídia, expulsasse, prendesse, torturasse e matasse adversários, como acontece na Venezuela, em Cuba, na Arábia Saudita, na Hungria, no Irã, na Rússia.

O que muitos de nós não percebemos à época, no entanto, é que havia ali também uma chance grandiosa. A chance de, pela primeira vez desde a redemocratização, unirmos os melhores quadros do país no mesmo lado. Agora Lula está com Alckmin. Armínio Fraga e Emicida estão no mesmo barco. Boulos e Simone Tebet também. Quem já imaginou João Amoedo e Mano Brown declarando voto no mesmo candidato? Esse bando de gente tão diferente se uniu justamente para garantir o direito de continuar discordando.

Nos unimos por sermos conservadores: queríamos conservar a Amazônia. Queríamos conservar o SUS. Queríamos conservar as instituições e o estado de direito.  Acreditávamos que os brasileiros só seriam livres se tivessem, todos eles, pretos e brancos, ricos e pobres, educação de qualidade. Acreditávamos na liberdade de crença em todas as religiões. Acreditávamos que cada um deveria viver como quisesse, sem um Estado reacionário se metendo em assuntos privados. Nos unimos pela esperança: acreditávamos que o Brasil não estava fadado ao fracasso, que ele podia ser muito mais do que aquela desgraça torpe que nos engolia, dia após dia. 

Neste domingo, dia 30, vamos fazer história. Vamos votar no Lula e no Alckmin, vamos tirar o Bolsonaro da frente e começar a construir um Brasil do tamanho dos nossos sonhos e possibilidades. Para poder dizer aos nossos filhos, netos e bisnetos, algum dia, lá na frente, que o Brasil em que eles vivem é um Brasil justo, sem ódio, plural, diverso, próspero e generoso, foi fruto da nossa luta, fruto da nossa união. A gente quer falar agora e dar uma chance para que todos repensem o seu papel nesse momento dramático. Nós podemos mudar nosso destino!


sábado, 8 de outubro de 2022

Análise: Quais as chances de Lula conseguir se eleger?

 







        Nenhum candidato a Presidência, em 1º lugar nas pesquisas a menos de 1 mês do 1º turno, acabou perdendo a eleição após 1989, a primeira eleição direta para Presidente desde 1961, quando ocorreu a última eleição democrática anterior à ditadura militar. 

A média das pesquisas de opinião indubitavelmente acertam ao determinar a maior ou menor probabilidade de um cenário ocorrer, por mais que os bolsonaristas digam que pesquisas de opinião não merecem crédito por terem errado aqui e acolá no passado (o que é equivocado, pois que simplesmente levantam o nível de convicção do eleitor naquele momento da campanha, e não o resultado final da eleição). Os eleitores do presidente, no entanto – e por motivos óbvios – acreditam em qualquer instituto, por mais desconhecido que seja, que ponha Bolsonaro em empate técnico com Lula. (Veja aqui gráficos e séries históricas de pesquisas eleitorais desde o ano 2000 durante eleições presidenciais e do legislativo:  https://www.poder360.com.br/agregador-de-pesquisas/ )

Há ainda o fato de que a tendência verificada ao longo dos meses confirma o quanto Bolsonaro vem, sim, ganhando terreno. Mas está fazendo isso em ritmo tão lento que, se não houver uma enorme aceleração nas últimas semanas antes da decisão final, precisaria pelo menos de mais 3 a 4 meses para superar Lula acima da margem de erro. A campanha eleitoral agora é muito mais curta, e se torna mais curta ainda em relação ao elevado grau de convicção que se atingiu neste ano, com mais de 70% dos eleitores totalmente decididos a mais de 1 mês antes do 1º turno. 

Descreveu-se um cenário de considerável piora para Lula no 1º turno comparado ao que se esperava, com base nas pesquisas mais recentes. Ainda assim fica difícil que perca no 2º turno devido à sua base bastante consolidada no Nordeste, a menos que perdesse gritantemente em todas as outras regiões, como aconteceu em 2018.

Mas, por outro lado, Bolsonaro tem a máquina do Estado nas mãos. Só isso já aumenta bastante sua chance de virar o jogo no último momento da campanha antes do pleito, colocando todo o foco, dinheiro e tempo no aparato público (disfarçada ou até mesmo escancarada como ocorreu no 7 de setembro) em prol de sua reeleição. Ele conseguiu, por exemplo, reunir uma avalanche de dinheiro público não previsto no orçamento usando o artifício inacreditavelmente fácil e maleável das Emendas de Relator (orçamento secreto), já que quem tem o apoio do Congresso, no Brasil, pode fazer qualquer coisa, atropelar qualquer lei, ou até fazer promessas não factíveis.

         Promessa de campanha de Bolsonaro, o Auxílio Brasil de R$ 800, por exemplo, não está nas contas da equipe econômica, e a área técnica do Ministério da Economia não recebeu nenhum cálculo do impacto do aumento sobre o orçamento da união.

https://valor.globo.com/politica/eleicoes-2022/noticia/2022/09/09/promessa-de-campanha-de-bolsonaro-auxilio-brasil-de-r-800-nao-esta-nas-contas-da-equipe-economica.ghtml 

Em meio à campanha, a mensagem presidencial encaminhada junto com o projeto contém a promessa de buscar a retomada dos R$ 600, mas sem dar detalhes:

  https://www.em.com.br/app/noticia/economia/2022/08/31/internas_economia,1390344/bolsonaro-propoe-auxilio-brasil-de-r-405-apesar-de-prometer-r-600.shtml 

    Bolsonaro tem também a base eleitoral com uma militância (muito) mais aguerrida, incondicional, fervorosa, mobilizada e apaixonadamente convicta (aliás, o problema dela é excesso de tudo isso, e não falta dela). Isso ajuda na "propaganda gratuita" em prol do candidato. E ao contrário de qualquer outro candidato, Bolsonaro tem um segmento religioso inteiro, com 30% da população sob sua influência, atuando com um fervor que não se via desde os primórdios da cristianização, só que agora em prol de um movimento político-ideológico, fazendo uso de um discurso não apenas religioso, mas até mesmo apocalíptico. Todos esses fatores trazem muita vantagem para sua campanha, com milhares de pessoas sob influência do que lhes é mais caro: o seu lado espiritual, e não apenas o racional. 

Bolsonaro tem ainda uma sustentação financeira nada desprezível: uma campanha extraoficial bancada por fontes privadas (megaempresários) para suas caravanas, motociatas, muitimídia, outdoors, etc., sobretudo por parte do agronegócio, além do que se poderia chamar de “nata da economia clandestina” como os chefões do garimpo, da grilagem, da agropecuária ilícita em terras públicas e indígenas e das corporações multifacetadas como as milícias urbanas. Por todos esses fatores as chances de vitória de Lula caem de, digamos, uns 75% para um índice entre 55 e 60%, considerando que permanece em 1º lugar, fora da margem de erro, a menos de 1 mês do 2º turno, com maior probabilidade de ganhar do que de perder.

A partida ainda não está decidida porque Bolsonaro, ao contrário dos outros candidatos, não esbarra em limites que impeçam sua autopromoção, sejam eles institucionais, financeiros ou, muito menos,  éticos. Vale até transformar o bicentenário da independência em um comício explícito de campanha e, em alguns momentos, até vulgar, quando o “Brasil acima de todos” foi atropelado na efeméride maior de sua história e o Estado brasileiro sequer foi mencionado, convertido que foi em instrumento de campanha. 

O jogo não está ganho, principalmente diante de um adversário que, além de ter a máquina governamental nas mãos, tem a tradição da reeleição contando a seu favor e não teria pudor em ganhar fora das regras do jogo, exatamente como aconteceu no primeiro mandato.


sexta-feira, 7 de outubro de 2022

A trajetória que muitos evangélicos desconhecem, e até preferem não conhecer


 





REVISTA LATINOAMERICANA DE DERECHO Y RELIGIÓN Vol. 6, NÚM. 1 (2020)  ISSN 0719-71601

O REINO: A HISTÓRIA DE EDIR MACEDO E UMA RADIOGRAFIA DA IGREJA UNIVERSAL

GILBERTO, NASCIMENTO. 1ª Edição, São Paulo, Companhia das Letras, 2019, 384 pp. ISBN 978-85-359-3298-0  ALEX ROSA


        Gilberto Nascimento é jornalista brasileiro que acompanha a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) desde o final de década de 80, desenvolvendo reportagens sobre a instituição em jornais de amplo alcance como a Folha de São Paulo, Estadão, O Globo e Isto é.

        Em novembro de 2019 lançou o livro “O Reino: a história de Edir Macedo e uma Radiografia da Igreja Universal”, pela Companhia das Letras, livro que além de contar com quase quatro décadas de acompanhamento do jornalista, intensificou-se numa investigação minuciosa e aprofundada nos últimos 4 anos, contando com mais de 70 entrevistados, entre ex-bispos, agentes públicos e estudiosos do tema.

        Os números da Igreja, com mais de 10 mil templos espalhados pelo mundo e 1,8 milhão de fiéis – ou 9 milhões, segundo o cálculo da própria igreja - , torna a instituição a quarta mais popular no Brasil, atrás da Assembleia de Deus, Batista e Congregação Cristã no Brasil, instituições bem mais antigas que a IURD nascida em 1977. Tal cenário enseja o trabalho desenvolvido pelo autor numa recapitulação histórica capaz de descrever os processos e etapas de formação de uma das instituições mais influentes do país.

1 Mestrando em Direito (UNESC), Graduado em Direito pela (UNESC); professor de filosofia no cursinho pré-vestibular comunitário Navegar; membro do Grupo de Criminologia Critica Latino-americana (UNESC); endereço e-mail: alexdarosa@hotmail.com.br

Rosa, Alex: Recensión. Revista Latinoamericana de Derecho y Religión. Vol. 6, Núm.1 (2020)

        O livro parte de uma narrativa cronológica desde o nascimento de Edir Macedo, fundador da IURD, descrevendo as conjunturas familiares, econômicas e políticas que influenciaram o estabelecimento da família Macedo no Rio de Janeiro. Paralelamente, também narra a história particular do Bispo – parcialmente apoiando-se em sua autobiografia assim como relatos e entrevistados – no seu caminho do despertar da fé, passando por algumas instituições sem lá encontrar respostas para suas angústias, até sua aproximação em 1963 com o movimento pentecostal norte-americano Nova Vida, protagonizado pelo pastor McAlister.

        Após 12 anos de envolvimento com o movimento, seguiu-se um período de turbulências e dissidências até a formação e inauguração da Igreja Universal do Reino de Deus junto à Romildo Ribeiro Soares, cunhado de Edir e principal responsável pela Igreja até a separação de ambos em 1980, seguida pela quase imediata fundação da Igreja Internacional da Graça de Deus, por parte de R. R. Soares.

        Com finalmente a ascensão de Macedo ao posto máximo de liderança, a história da Igreja passou cada vez mais a confundir-se com a história de seu fundador. A verticalidade, a ambição e organização do movimento – internamente e externamente – foi característica dos anos vindouros.

        A sede de poder marca a organização interna do movimento e pauta as expansões da Igreja. Marcadamente, a compra da Rede Record de Televisão – segundo maior faturamento nacional em 2019 -  foi início da expansão massiva da IURD que conta hoje com 29 emissoras próprias, 79 afiliadas, 68 rádios pelo pais, site virtual R7, editora própria, entre outros empreendimentos e ações vinculadas ao nome do próprio Edir – apontado em 2013 como pastor mais rico do Brasil pela Forbes.

        Os números expressivos da Igreja estão relacionados a sua gestão, no mínimo, nebulosa. Talvez um dos trechos mais reveladores da obra, os inúmeros processos judiciais, de variados tipos, são vistos em nuances no livro. Do uso de laranjas, contas no exterior, fraude em negócios, subornos, até envolvimento de pastores em casos de homicídio, fortemente abafados pela igreja e que em sua grande maioria acabaram em arquivamento por prescrição de prazo ou manobras judiciais que pouco versavam sobre o conteúdo dos casos.

REVISTA LATINOAMERICANA DE DERECHO Y RELIGIÓN Vol. 6, NÚM. 1 (2020); ISSN 0719-71603

        Conforme a ascensão da IURD, devida tanto por sua organização empresarial quanto sua articulação teológica, o envolvimento político era visto para Edir como uma etapa natural e necessária, pois, segundo ele, o poder econômico tinha limitações que só seriam superadas aliadas ao poder político para continuidade da expansão dos negócios – negócios empresarias discursivamente sustentados como ferramentas de evangelização.

        Organizados politicamente num partido político próprio, o PRB (criado em 2005, hoje denominado republicanos), a Universal conseguiu eleger em 2018 o prefeito de uma das principais capitais do país (Rio de Janeiro), Marcelo Crivella (senador desde 2002), assim como um senador, 30 federais (universo de 513) e 42 deputados estaduais espalhados pelo país.

        O critério de oportunidade era e é o único parâmetro para a Universal. Segundo o autor, o movimento é muito pragmático: sempre estar junto ao poder, o que explica a relação que a igreja estabeleceu com os partidos durante todos esses anos. Anos condenando e demonizando, o na época candidato, Luís Inácio Lula da Silva foram rapidamente modificados para o apoio ao Partido dos Trabalhadores (PT) e a Lula nas eleições de 2002 – embora Lula e Edir tenham uma história particular que os envolve, referente ao caso da prisão do Bispo e a apresentação de um advogado pelo candidato.

        O apoio que durou até os últimos meses do governo da presidenta Dilma (PT), em 2016, durou e manteve-se por pura circunstância e conveniência política. Acompanhando as massas e movimentos nacionais, em 2018 a IURD apoiou o hoje presidente Jair Bolsonaro (PSL) – levando em conta também a desavença entre Edir e o candidato da oposição Haddad (PT) oriunda da época em que este foi ministro da educação e vetou a criação de uma universidade pela igreja.

        A narrativa histórica exposta pelo autor é subsidiariamente complementada com estudos teóricos, principalmente na área da sociologia e teologia, utilizando-se fundamentalmente dos estudos de Ricardo Mariano (Neopentecostais: sociologia do neopentecostalismo) e Leonildo Campos (Templo, Teatro e Mercado). Essa dimensão teórica complementar a narrativa histórica auxilia a compreender o crescimento e Rosa, Alex: Recensión. Revista Latinoamericana de Derecho y Religión. Vol. 6, Núm.1 (2020) expansão da Igreja. Neopentecostal, ocupa uma posição complexa dentro do próprio campo evangélico assim como mantém um embate quase permanente com outras denominações religiosas.

        Pautada pela teologia da prosperidade, suas exigências de dízimo reorganizam a relação do fiel com o Deus: não se trata de promessa futura, no céu, mas sim na terra. A teologia pregada pela IURD estimula os fiéis a doarem tanto quanto possível – os casos judiciais de arrependimento são inúmeros – pois serão recompensados em vida e num curto prazo com bens materiais, proporcionais a doação do fiel.

   As formulações teológicas são paradoxais, ora contraditórias, sempre funcionando enquanto estratégias de subjetivação podendo mudar livremente, como dá o tom na obra de Edir “Libertação da Teologia (1997)”. Segundo o autor Gilberto Nascimento, as opções teológicas adotadas pela igreja modularam-se assumindo em geral três aspectos, um primeiro momento no final do século XX pautado pela teologia da prosperidade e ataque à igreja católica; um segundo momento no início do século XXI marcado pela demonologia e ataques às religiões de matriz africana; e um último marcado por certo fundamentalismo, ou apropriação de elementos do judaísmo, com marca a construção de uma réplica do “Templo de Salomão”, em São Paulo capital, 2014.

        Numa lógica absolutamente empresarial, Edir organiza os pastores e bispos por arrecadação, estabelece metas e afasta politicamente aqueles que podem ser seus rivais – enviando-os a outros países, isolando-os. Estratégico, político, dosa muito bem as polêmicas em que sem envolve sempre mantendo a igreja em movimento. A história da IURD, junto a outras denominações neopentecostais que se alastram e conquistam cada vez mais adeptos, especialmente na América Latina, como sinaliza Dussel, destaca a importância da obra de Gilberto e auxilia a compreender as especificidades desse movimento político, religioso e ideológico próprio a contemporaneidade.


Quando fé, pensamento anticiência e charlatanismo andam juntos

Alguns líderes religiosos evangélicos se envolveram em polêmicas terríveis durante a pandemia. R.R. Soares, por exemplo, anunciou a venda de uma água ungida para curar as infecções por coronavírus. Até hoje não se sabe se o pastor foi imunizado com as doses das vacinas que foram disponibilizadas à população brasileira, uma vez que foi intubado em estado grave num hospital de Copacabana em maio de 2021, período mais crítico da pandemia, segundo apuração do UOL na época.

Edir Macedo disse que o coronavírus era “inofensivo” e chamou a pandemia de uma tática de Satanás e da mídia para causar pânico na população. Valdemiro Santiago vendeu feijões por mil reais, que foram apelidados de “feijões mágicos”, e que também evitariam a contaminação pela Covid-19.

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

O JAIR QUE HÁ EM NÓS

 


“O JAIR QUE HÁ EM NÓS" 

O Brasil levará décadas para compreender o que aconteceu naquele nebuloso ano de 2018, quando seus eleitores escolheram, para presidir o país, Jair Bolsonaro. Capitão do Exército expulso da corporação por organização de ato terrorista; deputado de sete mandatos conhecido não pelos dois projetos de lei que conseguiu aprovar em 28 anos, mas pelas maquinações do submundo que incluem denúncias de “rachadinha”, contratação de parentes e envolvimento com milícias; ganhador do troféu de campeão nacional da escatologia, da falta de educação e das ofensas de todos os matizes de preconceito que se pode listar. 

Embora seu discurso seja de negação da “velha política”, Bolsonaro, na verdade, representa não sua negação, mas o que há de pior nela. Ele é a materialização do lado mais nefasto, mais autoritário e mais inescrupuloso do sistema político brasileiro. Mas – e esse é o ponto que quero discutir hoje – ele está longe de ser algo surgido do nada ou brotado do chão pisoteado pela negação da política, alimentada nos anos que antecederam as eleições.

Pelo contrário, como pesquisador das relações entre cultura e comportamento político, estou cada vez mais convencido de que Bolsonaro é uma expressão bastante fiel do brasileiro médio, um retrato do modo de pensar o mundo, a sociedade e a política que caracteriza o típico cidadão do nosso país.

Quando me refiro ao “brasileiro médio”, obviamente não estou tratando da imagem romantizada pela mídia e pelo imaginário popular, do brasileiro receptivo, criativo, solidário, divertido e “malandro”. Refiro-me à sua versão mais obscura e, infelizmente, mais realista segundo o que minhas pesquisas e minha experiência têm demonstrado. 

No “mundo real” o brasileiro é preconceituoso, violento, analfabeto (nas letras, na política, na ciência... em quase tudo). É racista, machista, autoritário, interesseiro, moralista, cínico, fofoqueiro, desonesto.

Os avanços civilizatórios que o mundo viveu, especialmente a partir da segunda metade do século XX, inevitavelmente chegaram ao país. Se materializaram em legislações, em políticas públicas (de inclusão, de combate ao racismo e ao machismo, de criminalização do preconceito), em diretrizes educacionais para escolas e universidades. Mas, quando se trata de valores arraigados, é preciso muito mais para mudar padrões culturais de comportamento. 

O machismo foi tornado crime, o que lhe reduz as manifestações públicas e abertas. Mas ele sobrevive no imaginário da população, no cotidiano da vida privada, nas relações afetivas e nos ambientes de trabalho, nas redes sociais, nos grupos de whatsapp, nas piadas diárias, nos comentários entre os amigos “de confiança”, nos pequenos grupos onde há certa garantia de que ninguém irá denunciá-lo. 

O mesmo ocorre com o racismo, com o preconceito em relação aos pobres, aos nordestinos, aos homossexuais. Proibido de se manifestar, ele sobrevive internalizado, reprimido não por convicção decorrente de mudança cultural, mas por medo do flagrante que pode levar a punição. É por isso que o politicamente correto, por aqui, nunca foi expressão de conscientização, mas algo mal visto por “tolher a naturalidade do cotidiano”.

Se houve avanços – e eles são, sim, reais – nas relações de gênero, na inclusão de negros e homossexuais, foi menos por superação cultural do preconceito do que pela pressão exercida pelos instrumentos jurídicos e policiais. 

Mas, como sempre ocorre quando um sentimento humano é reprimido, ele é armazenado de algum modo. Ele se acumula, infla e, um dia, encontrará um modo de extravasar. Como aquele desejo do menino piromaníaco que era obcecado pelo fogo e pela ideia de queimar tudo a sua volta, reprimido pelo controle dos pais e da sociedade. Reprimido por anos, um dia ele se manifesta num projeto profissional que faz do homem adulto um bombeiro, permitindo-lhe estar perto do fogo de uma forma socialmente aceitável. 

Foi algo parecido que aconteceu com o “brasileiro médio”, com todos os seus preconceitos reprimidos e, a duras penas, escondidos, que viu em um candidato a Presidência da República essa possibilidade de extravasamento. Eis que ele tinha a possibilidade de escolher, como seu representante e líder máximo do país, alguém que podia ser e dizer tudo o que ele também pensa, mas que não pode expressar por ser um “cidadão comum”. 

Agora esse “cidadão comum” tem voz. Ele de fato se sente representado pelo Presidente que ofende as mulheres, os homossexuais, os índios, os nordestinos. Ele tem a sensação de estar pessoalmente no poder quando vê o líder máximo da nação usar palavreado vulgar, frases mal formuladas, palavrões e ofensas para atacar quem pensa diferente. Ele se sente importante quando seu “mito” enaltece a ignorância, a falta de conhecimento, o senso comum e a violência verbal para difamar os cientistas, os professores, os artistas, os intelectuais, pois eles representam uma forma de ver o mundo que sua própria ignorância não permite compreender. 

Esse cidadão se vê empoderado quando as lideranças políticas que ele elegeu negam os problemas ambientais, pois eles são anunciados por cientistas que ele próprio vê como inúteis e contrários às suas crenças religiosas. Sente um prazer profundo quando seu governante maior faz acusações moralistas contra desafetos, e quando prega a morte de “bandidos” e a destruição de todos os opositores. 

Ao assistir o show de horrores diário produzido pelo “mito”, esse cidadão não é tocado pela aversão, pela vergonha alheia ou pela rejeição do que vê. Ao contrário, ele sente aflorar em si mesmo o Jair que vive dentro de cada um, que fala exatamente aquilo que ele próprio gostaria de dizer, que extravasa sua versão reprimida e escondida no submundo do seu eu mais profundo e mais verdadeiro. 

O “brasileiro médio” não entende patavinas do sistema democrático e de como ele funciona, da independência e autonomia entre os poderes, da necessidade de isonomia do judiciário, da importância dos partidos políticos e do debate de ideias e projetos que é responsabilidade do Congresso Nacional. É essa ignorância política que lhe faz ter orgasmos quando o Presidente incentiva ataques ao Parlamento e ao STF, instâncias vistas pelo “cidadão comum” como lentas, burocráticas, corrompidas e desnecessárias. Destruí-las, portanto, em sua visão, não é ameaçar todo o sistema democrático, mas condição necessária para fazê-lo funcionar. 

Esse brasileiro não vai pra rua para defender um governante lunático e medíocre; ele vai gritar para que sua própria mediocridade seja reconhecida e valorizada, e para sentir-se acolhido por outros lunáticos e medíocres que formam um exército de fantoches cuja força dá sustentação ao governo que o representa. 

O “brasileiro médio” gosta de hierarquia, ama a autoridade e a família patriarcal, condena a homossexualidade, vê mulheres, negros e índios como inferiores e menos capazes, tem nojo de pobre, embora seja incapaz de perceber que é tão pobre quanto os que condena. Vê a pobreza e o desemprego dos outros como falta de fibra moral, mas percebe a própria miséria e falta de dinheiro como culpa dos outros e falta de oportunidade. Exige do governo benefícios de toda ordem que a lei lhe assegura, mas acha absurdo quando outros, principalmente mais pobres, têm o mesmo benefício. 

Poucas vezes na nossa história o povo brasileiro esteve tão bem representado por seus governantes. Por isso não basta perguntar como é possível que um Presidente da República consiga ser tão indigno do cargo e ainda assim manter o apoio incondicional de um terço da população. A questão a ser respondida é como milhões de brasileiros mantêm vivos padrões tão altos de mediocridade, intolerância, preconceito e falta de senso crítico ao ponto de sentirem-se representados por tal governo."

Prof. Márcio Sotelo Felipe