Observando mais de perto, a
adesão de evangélicos ao bolsonarismo não é casual, e muito menos meramente circunstancial.
A quantidade deles que optou por seguir os passos de Bolsonaro se deve a algo bem
mais complexo do que uma aproximação pura e simples, mas de fusão por osmose. Traduzindo, não se
trata de uma questão de convencimento massivo por meio da técnica que nos
acostumamos a chamar de “lavagem cerebral”, mas de uma identidade estrutural e
profunda pelo aspecto conceitual, sociológico, cultural, psicológico, ideológico
e doutrinário em dimensão visceral e indelével, e não apenas superficial como
acontece com aquelas coisas que nos despertam paixão em algum momento, e aos
poucos vão se dissipando pelo efeito do tempo.
Essa característica empresta ao
fato um caráter ainda mais assustador, pois derruba a tese de que se trate de
um fenômeno contextual decorrente da recente chegada da extrema direita ao
poder, e se manteve circunstancialmente sob holofotes por atrair a atenção do
país inteiro – e também do mundo – para
suas movimentações. Quando se fala em “fenômeno” entendemos tratar-se de algo
eventual, com início, meio e fim, malgrado uma origem desconhecida e término imprevisível.
Mas a característica mais evidente é a de que, em algum momento, ele cessa. A
má notícia, neste caso específico, para aquelas pessoas que adotam a moderação
e o equilíbrio como modelo de vida, é descobrir que ele não irá passar, como se pensava no início. E a razão disso é que o
“fenômeno”, tecnicamente falando, se resumiu aos fatores que lhe deram causa – incluindo um momento político de muita tensão
e incertezas – mas não ao modelo que observamos hoje como parte integrante e
indissociável do nosso cotidiano.
Dessa abordagem, porém,
trataremos mais à frente. Vamos agora nos concentrar naquela identidade
estrutural que, antes do “efeito bolsonaro”,
estava distribuída entre “bolsonaristas” e “evangélicos”, e até então tidos
como coisas distintas. Já há algum tempo essa fronteira deixou de existir, e o
que percebemos agora é uma massa compacta e uniforme de característica única em
substância, pensamento e modus-operandi.
A expressão usada para descrever
essa uniformidade atingida entre bolsonaristas e evangélicos, a que chamei de
“fusão por osmose”, para transformá-lo numa única massa de pessoas pensando
exatamente da mesma forma e em todos aqueles aspectos mencionados, é
perfeitamente visível quando listamos suas características, que justificam a
expressão pejorativa de “gado” para descrever um comportamento “em bloco”
desprovido do pensamento lógico e consistente, qualidade inerente a indivíduos
que não admitem ser conduzidos pelo chamado “efeito-manada”.
Embora alguns defendam que os evangélicos
foram aliciados por um discurso conservador, mas claramente falso, que se
aproximava dos objetivos deles – Deus, Pátria e Família – eu tendo a acreditar
que não houve uma mudança real por parte desse grupo. Pelo menos a parte deles
que se aliou – ou se fundiu – ao bolsonarismo, sempre pensou, falou e agiu em
consonância com as premissas da ideologia, antes mesmo dela tomar o formato que
assumiu no contexto da extrema-direita. A
parcela evangélica que não aderiu, em algum momento pode até ter sido seduzida
pelo discurso usado como ardil, mas sua natureza focada em crenças legítimas e
destituídas de interesses pessoais lhe mostrou que algo estava errado, e a fez
repensar. Com isso vacinaram-se contra tudo o que que ainda viria, e que agora
podem confirmar.
Quanto aos evangélicos que a
extrema direita nos revelou, inúmeros pontos em comum se estabeleceram entre eles
e o conservadorismo representado pelo bolsonarismo emergente. Como principal
característica, deixaram explícita sua recusa em aceitar argumentos lógicos e comprováveis
que contradizem crenças arraigadas e sem qualquer consistência; mas também derivou
numa sequência de fatores complexos e interligados entre si, algumas das quais
passo a descrever com o máximo de detalhes possível:
Viés de confirmação por
inclusão: As pessoas têm a tendência de buscar informações que confirmem
suas pseudo verdades e crenças preexistentes (reais ou não) para rejeitar as
que as contradizem, por mais consistentes e respaldadas que se mostrem na
prática do cotidiano. Isso pode resultar numa escolha seletiva de informações
que reforçam tanto as crenças quanto a recusa em considerar evidências
contrárias. Evangélicos podem utilizar a
bíblia para esse efeito, políticos a Constituição, ou outros dispositivos
legais. Em ambos os casos eles criam narrativas em cima de interpretações
deturpadas desses instrumentos, seja por dificuldade cognitiva real ou por
interesse na sustentação usada para se sobrepor às ideias de outrem.
Viés de confirmação por
exclusão: As pessoas podem buscar
respaldo para suas crenças fazendo uso de premissas forjadas ou inexistentes.
Ao usar a bíblia ou a Constituição como fundamento, por exemplo, elas irão desconsiderar
os versículos ou artigos dos dois instrumentos que se contraponham àquilo que
tentam impor como a verdade a ser aceita. Em suma, elas criam uma versão dos
fatos à sua própria imagem e semelhança, como se os dispositivos que os
contradigam não existissem, e os elementos a favor ou contrários não estivessem
ao seu alcance.
Dissonância Cognitiva:
Aceitar evidências contrárias às crenças arraigadas pode causar profundo desconforto
psicológico nessas pessoas, o que pode se transformar num sentimento devastador
de ódio e revolta contra quem as contrarie. Na tentativa de evitar esse
desconforto elas tendem a ignorar ou rejeitar qualquer informação que entre em
conflito com suas crenças construídas, independente de evidências ou até de
provas concretas que as refutem. Ambos os grupos atuam de forma igual, onde as
redes sociais atualmente desempenham um papel fundamental nas ações de
disseminação de mensagens de viés dogmático ou doutrinário com as quais reafirmam
suas teses de forma invasiva, sistemática, e à revelia de seus destinatários,
sem respeitar-lhes as ideias, crenças, ou quaisquer outras características diferentes
das suas. Pela parte dos evangélicos, eles acreditam “estar salvando” pessoas
do inferno pela “disseminação da Palavra”, e por parte dos ideólogos políticos,
buscam carrear mais pessoas – notadamente as mal-informadas – para suas
correntes políticas focadas em poder, mesmo na ausência de qualquer proposta voltada para o bem coletivo.
Identidade e
Pertencimento: Crenças arraigadas – sejam religiosas ou políticas –
constantemente vêm ligadas à identidade pessoal e ao senso de pertencimento a
um grupo social, facilmente perceptível no tratamento entre seus membros. Pelo
viés religioso estes se tratam por “irmãos”, “escolhidos”, ou “pessoas de Deus”.
Pelo viés político, eles adotam denominações próprias e símbolos que remetem ao
seu reduto de apoiadores. Não raramente se apropriam de símbolos nacionais na
tentativa de legitimar sua imagem construída de um “lado certo” combatendo o
mal, e neste quesito a política não se difere em nada das religiões. O ponto
comum é que aceitar argumentos contrários pode ameaçar essa identidade e o
sentido de pertencimento, o que leva as pessoas a uma resistência ferrenha a
mudanças em suas crenças, e se voltar contra qualquer esforço externo de lhes
mostrar que estão sendo manipuladas.
Medo de Incerteza:
Mudar crenças arraigadas pode levar a um estado de incerteza e medo do desconhecido.
Algumas pessoas preferem manter suas crenças, mesmo que inconsistentes e
ilógicas, em vez de enfrentar a incerteza que acompanha a mudança de
perspectiva. Por isso criam uma longa e complexa lista de justificativas para
afirmá-la, de modo a não ficarem vulneráveis diante dos que duvidem dela. Neste
quesito tanto o grupo político quanto o evangélico seguem exatamente o mesmo
modus-operandi, já que compartilham os mesmos medos em relação aos adversários,
sempre tratados como uma guerra entre o bem e o mal.
Efeito Backfire:
Apresentar evidências contrárias pode, paradoxalmente, fazer com que as pessoas
se apeguem ainda mais às suas crenças, em um fenômeno conhecido como
"efeito backfire" ou “tiro pela culatra”. Quanto mais se tente
demovê-las de uma ideia, mas se sentem desafiadas a defender suas crenças com mais veemência
do que antes. Há alguns anos esse tipo de ação se tornou popular nos EUA como
“efeito Streisand”, que é quando o resultado obtido é totalmente inverso ao que
se buscava. Nisso a política partidária e os grupos religiosos não apresentam
qualquer diferença.
Influência do Grupo:
As opiniões do grupo ao qual uma pessoa pertence podem exercer uma pressão tão
forte que se transforma em barreira intransponível para que a pessoa enxergue
as inconsistências e fragilidades de suas crenças. O medo de ser excluído ou
rejeitado pelo grupo pode levar alguém a ignorar quaisquer evidências contrárias
simplesmente para favorecer o seu grupo, mesmo consciente de que as crenças
defendidas por ele não se sustentam. E não é para menos: é comum que se sintam
amedrontadas pela ideia da rejeição, ou até perseguidas depois de uma decisão
que ameace a unidade do grupo, e isso vale tanto para a política, para o meio
religioso, ou qualquer outro grupo que se reúna em torno de uma crença,
conceito ou premissa do qual dependa sua manutenção, o que não exclui nem os
grupos familiares.
Dificuldade de
Mudança: Mudar crenças profundamente enraizadas requer esforço cognitivo e
emocional. Algumas pessoas podem achar difícil reconhecer que estiveram
equivocadas, ou que as crenças defendidas por seu grupo se mostraram
inconsistentes, o que pode dificultar a aceitação de novos argumentos que se
lhes apresentem revelando a verdade dos fatos.
Emoções e Percepções:
As emoções e percepções pessoais muitas vezes desempenham um papel mais
influente em nossas decisões do que a lógica pura. Mesmo que um argumento seja
logicamente válido, se ele não ressoar emocionalmente é mais provável que seja
rejeitado, e isso não significa, necessariamente, que seja uma questão de
caráter ou de má-índole, mas tão somente de insegurança e apego àquilo que
deixa as pessoas mais seguras. Conhecer a verdade dos fatos e negá-los não é
tão simples quanto “decidir pelo lado certo”, para uma esmagadora maioria de
pessoas, e isso se justificaria porque, diante de evidências incontestáveis,
elas seguem apegadas às antigas crenças, ao seu grupo de origem, ou aos seus líderes,
por piores e indefensáveis que se mostrem os mal-feitos deles.
A primeira coisa a extrair desta questão
é que as pessoas necessariamente não permanecem num determinado grupo porque
querem continuar afrontando os contrários, e nem porque acreditam estar do lado
certo: fazem-no simplesmente porque têm medo do que acontecerá a partir de sua
decisão de se afastar. A pressão que sentem por estar onde estão lhes parece
muito mais fácil de suportar do que desistir do espaço já conquistado, apenas por
terem se acostumado a lidar com ela. O medo do que poderá sobrevir com a
mudança pode ser muito maior, e isso as impede de tomar uma decisão mesmo que
desejassem fazê-lo. Daí porque condená-las pode se mostrar injusto e até cruel,
pois no máximo são pessoas fracas e inseguras frente à vida, mas não
necessariamente “mau-caráter”, como alguns insistem em acreditar.
É importante reconhecer que a
resistência a argumentos lógicos não é exclusiva de um grupo específico de
pessoas ou de um conjunto particular de crenças. Todos estamos suscetíveis a
esses fatores psicológicos em diferentes graus, já que existem muitos fatores
subjetivos envolvidos e toda uma complexidade de interpretações para justificar
a permanência em qualquer dos lados. É claro que, instintivamente, nossa
escolha deverá recair sobre aquela lógica majoritariamente aceita, focada em
ética e discernimento quanto ao justo, e da percepção sistêmica em relação ao
benefício coletivo. Só que todas essas premissas também sofrem influências decorrentes
da moral vigente, e das regras que regem o contexto social onde tudo se
insere.
Parodiando Nelson Rodrigues –
quando sustentou que toda unanimidade é burra – faz-se necessário lembrar que
não há regra sem exceção. Chamo atenção, portanto, que nas vezes em que se leu
“evangélicos” ao longo deste texto não estivemos falando daqueles grupos
religiosos com que nos acostumamos a conviver até 2018 – que tratavam religião
como religião – mas desses a que fomos apresentados depois, que a transformaram
numa forma de prostituir a política como um fim em si mesmo, em lugar do tão buscado
meio de nos tornar melhores.
Existem, sim, evangélicos que
seguem sendo evangélicos, na verdadeira acepção da palavra, e não apenas esses
que usam a denominação como um escudo para disfarçar a natureza que sempre lhes
foi inerente, ainda que não o tivessem expressado até aqui. Mas, infelizmente, esses hoje são minoria
diante da horda de “evangélicos” que trocaram a divindade metafísica que afirmavam
venerar por outra bem mais concreta e “palpável” em seu sentido mais literal, que
acabou por convertê-los de “crentes” em “seguidores”.
Em relação a esse grupo que se manteve fiel às suas raizes
espirituais por estar concentrado em sua busca e distante do embate político,
meu sentimento é de que são tão vítimas quanto as pessoas que preservaram seu
equilíbrio e visão de mundo, passando ao largo do que veio depois. Até mais do
que estas, talvez, pois que ganharam uma espada maior pendendo sobre suas
cabeças, até que novos tempos consigam transformar toda essa tragédia em
passado, e de novo possam voltar a se apresentar como evangélicos sem medo do
desprezo e do ressentimento que seus pretensos “irmãos” lhes legaram, sob o manto de uma falsa unidade
de fé.
Há que se considerar portanto que, a rigor, o fardo que irão
carregar se mostre ainda mais pesado que o de todo o restante da população, pois
que a pecha de “bolsonaristas”, plena de conotações das mais indígnas e
pejorativas, os irá acompanhar ainda por muito tempo, a exemplo do
antisemitismo que permanece vívo séculos depois de criado, e ainda dá causa a conflitos
e sofrimento para milhões de pessoas mundo afora. Possivelmente por muito tempo
ainda terão que vivenciar uma diáspora por que nenhum cristão ou praticante de
qualquer outra religião mereceria passar, por suas igrejas se terem
transformado em verdadeiras fontes de desinformação ou redutos de manipuladores
disfarçados de líderes religiosos.
E quanto a todos os demais que se mantiveram lúcidos para
perceber a tragédia social em que estivemos envolvidos nestes últimos anos, o
importante é ter em mente que ela nos introduziu uma nova era em que “a guerra
do bem contra o mal” não vai acabar com a saída de Bolsonaro do cenário
político. Seus seguidores, representados pela extrema-direita mundial, foi
introduzida no país – como dito no início – de forma indelével e permanente,
restando-nos apenas descobrir formas de lidar com ela para que não nos pegue
tão desprevenidos e vulneráveis quanto estivemos quando ela ocupou o espaço que
nos foi sonegado em algum momento. A
batalha vai ser dura, mas, como sempre acontece, descobriremos a forma de
resistência que mais se adeque a esse gigantesco desafio... e acredite: sobreviveremos!